O futuro é sempre uma incógnita e nem todos estão disponíveis a se arriscar em relação a ele, mudando-se para um lugar desconhecido ou lançando-se num projeto sem muitas certezas. Foi, no entanto, exatamente isso que fez a professora Yvonne Primerano Mascarenhas em 1956, quando, aos 25 anos de idade, aceitou se mudar para São Carlos, interior de São Paulo, para ajudar a transformar a Escola de Engenharia daquela cidade em uma universidade na qual o ensino e a pesquisa realmente fizessem a diferença.
Algo desse tipo pode parecer comum para quem analisa a situação apenas sob o prisma atual. A cidade de São Carlos é atualmente uma das mais desenvolvidas do interior paulista e a Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) integra atualmente, com outros institutos – como o de Física de São Carlos (IFSC), ao qual a professora Yvonne Mascarenhas encontra-se vinculada –, a Universidade de São Paulo, uma das instituições de ensino e pesquisa mais produtivas e respeitadas do país.
Imagine, no entanto, a situação há cerca de 60 anos, num tempo em que a população local era pequena, a cultura ainda provinciana e ligada basicamente à produção agrícola e as condições gerais de então muito precárias. “Nessa época, nem mesmo estrada asfaltada havia para se chegar a São Carlos e a própria Escola de Engenharia estava em construção”, conta Mascarenhas.
Imagine ainda o significado dessa mudança para uma jovem de apenas 25 anos, criada e acostumada à vida cultural do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, então capital federal, recém-casada, recém-formada em química e física em duas das melhores instituições do país e já envolvida com a pesquisa acadêmica em uma área de conhecimento ainda praticamente desconhecida por aqui – a cristalografia.
Sem dúvida, foi um choque, mas mudar-se de cidade e de vida, de um modo geral, foi também uma imensa ‘janela de oportunidades’ que se abriu para Mascarenhas.
Como ela mesmo conta, em São Carlos pôde criar tranquilamente seus quatro filhos. Também pôde contar com a disposição e a competência de técnicos, colegas pesquisadores e alunos para construir e consolidar uma brilhante carreira profissional em física, que hoje merecidamente lhe confere o título de pioneira da cristalografia moderna em nosso país.
Tudo começou a partir de seu encantamento por essa área do conhecimento ainda na graduação em física e por influência, na década de 1950, de um bom e empolgado professor, Elisiário Távora, na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mas foi realmente a partir de sua ida para São Carlos que Yvonne Mascarenhas começou a ter oportunidades preciosas em cristalografia. A primeira delas foi estagiar no Instituto de Tecnologia Carnegie (Carnegie Tech), nos Estados Unidos, em 1959. A segunda, integrar o grupo de pesquisas do laboratório de cristalografia da Universidade de Pittsburgh (EUA), entre 1959 e 1960.
Com essas experiências na bagagem e de volta ao Brasil, Mascarenhas introduziu entre nós conhecimentos e metodologias inovadoras para a época e defendeu, ainda nos anos 1960, seu doutorado sobre determinação de estruturas cristalinas por difração de raios X (um estudo do formato manganoso bi-hidratado).
Em seguida, partiu novamente para adquirir mais conhecimentos mundo afora: foi pesquisadora e professora visitante na Universidade de Princeton (EUA), em 1966, e professora visitante do Instituto Politécnico do México, em 1967, acumulando ainda mais experiências que resultaram na obtenção de seu título de livre-docência na EESC/USP, em 1971.
Além disso, entre 1972 e 1973, esteve também na Escola de Medicina Harvard (EUA), onde trabalhou no laboratório dirigido por William Lipscomb, ganhador do Nobel de Química, em 1976, e pôde conhecer e se aprimorar ainda mais na metodologia de ponta que se empregava na época em cristalografia.
Também esteve, entre 1979 e 1980, no Birkbeck College da Universidade de Londres, onde se uniu aos esforços do grupo liderado pelo cristalógrafo de proteínas Sir Thomas Blundell para determinar a estrutura do hormônio oxitocina. O trabalho lhe rendeu a coautoria do artigo ‘Crystal-structure analysis of deamino-oxytocin: conformational flexibility and receptor-binding’, publicado na revista Science, em 1986, e abriu as portas dessa importante instituição e desse excelente grupo de pesquisas para a formação de toda uma nova geração de pesquisadores em cristalografia de proteínas no Brasil.
Yvonne Mascarenhas completa 83 anos de vida em 2014 e 60 anos de formada. São inúmeros os alunos que ajudou a formar, os trabalhos que publicou e os prêmios que recebeu. Também é imensurável a contribuição que deu (e dá ainda) à pesquisa e ao ensino em física, assim como à divulgação científica.
A homenagem de Ciência Hoje neste ano, proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como Ano Internacional da Cristalografia, não pode, portanto, ter outro destino. Yvonne Mascarenhas é nossa referência na área – um cristal raro e lapidado pela curiosidade e pelo desejo de saber mais e mais.
A senhora sempre foi uma incentivadora da divulgação científica. Como começou seu interesse por essa área?
Yvonne: Sempre achei importante a divulgação científica e o ensino de ciências, desde o início da minha carreira, como professora e pesquisadora. Mas ultimamente, sobretudo depois da aposentadoria, em 2001, tenho me dedicado ainda mais a esses temas e considerado que difundir a ciência, seja por meio do ensino ou da divulgação, é realmente fundamental. No momento, coordeno aqui, no Polo de São Carlos, a Agência de Difusão Científica, do Instituto de Estudos Avançados da USP/São Carlos, voltada especialmente para apoiar o ensino fundamental e médio. Temos um portal de difusão de notícias, o Portal Ciência Web, cujas ações oriento, e também participo de eventos e atuo em várias escolas. Percebo que, quando têm contato com a ciência, com a beleza da ciência quando bem divulgada ou ensinada, os jovens se apaixonam, e precisamos disso: despertar esses possíveis talentos para a ciência.
Como surgiu essa iniciativa?
Em grande parte graças à iniciativa do meu ex-marido, o [físico] Sérgio [Mascarenhas Oliveira]. Ele passou no final da década de 1990 um período no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, EUA, e voltou com verba e disposição de criar, em São Carlos, um polo do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O Sérgio tem essa característica: ele gosta de novidades e tem entusiasmo para executá-las. Como eu estava me aposentando, ofereci-me para colaborar, com a condição de que fosse na área de difusão científica e em atividades voltadas à escola pública. Isso porque considero que a escola pública em nosso país é muito carente e, embora haja bons exemplos, demanda ainda muito de nossa atenção. Criamos, então, uma série de ações educacionais e de divulgação voltadas ao tema da educação ambiental, em conjunto com o Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC), que já existia aqui no IFQSC há muitos anos e tinha larga experiência na área pedagógica e de divulgação científica. Dessa iniciativa também participou La Casa de las Ciencias, de Córdoba, Argentina. Foi uma época de trabalho muito empolgante, de muita troca entre alunos e professores de ambas as instituições. Lembro que nessa época realizamos um congresso aqui em São Carlos e reunimos os mais importantes centros e museus de ciências da América Latina, com o objetivo de elaborar um projeto de integração dessas instituições.
Vera Rita da Costa
Ciência Hoje /SP