Falar sobre pobreza e miséria como se fossem problemas autoevidentes – e de sua eliminação como se dependesse unicamente de decisão técnica tomada com base em um cálculo – é enganoso. Pobreza e miséria são fenômenos carregados de múltiplos e disputados sentidos. A orientação da ação pública não é apenas técnica. Ela depende dos significados atribuídos ao fenômeno, bem como do conhecimento social de sua origem e dos modos de enfrentamento. É, porém, no âmbito do discurso público que diferentes concepções e prescrições podem se contrapor, e a explicitação de diferentes critérios de identificação de situações de pobreza e pobreza extrema constitui uma contribuição a esse debate.
Por outro lado, o reconhecimento de que a natureza de qualquer problema social depende de seu significado não deveria excluir a possibilidade de representar esse problema de forma empírica, desde que essa representação não seja colocada como exclusiva: no mundo social, dada a evidente limitação do conhecimento humano, a pluralidade de meios e modos de se conhecer é a clareza a que se pode aspirar. É preciso ainda reconhecer o peso de argumentos econômicos, como o custo de um programa ou política social, entre os vários argumentos que poderiam e deveriam pesar na administração de problemas sociais.
Portanto, embora nossa ênfase seja na mensuração da pobreza e no custo que sua eliminação teria, não há nada intrinsecamente empiricista ou economicista na posição deste artigo. Seu propósito, sem qualquer pretensão de solucionar o problema da pobreza, em termos de suas causas eficientes e sempre profundas, é contribuir com um argumento de viabilidade econômica para o debate sobre a possibilidade de vivermos em um país sem pobreza, recolocando a decisão no âmbito do factível. No fundo, a pergunta que nos colocamos é: a redistribuição de renda requerida para a eliminação da condição de pobreza no Brasil seria financeiramente proibitiva?
Quem é pobre no Brasil?
Pretendemos obter uma resposta para essa pergunta por meio de um exercício de simulação. Primeiro, buscamos critérios de definição de pobreza absoluta e relativa que circulam em diferentes comunidades de política social e, a partir deles, utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2012, do Instituto brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estimamos quantas pessoas estão em situação de pobreza e pobreza extrema no país.
Identificamos no debate público recente quatro critérios. Dois envolvem pobreza absoluta: o critério do Programa Bolsa Família (PBF) e o critério da cesta de alimentos. Outros dois, referentes à pobreza relativa, são usados por países da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE).
Cada um desses critérios, ao estabelecer uma linha de pobreza com base em algum referencial normativo, permite estimar, ao mesmo tempo, quantos e quão pobres são os pobres, e qual o esforço necessário, em termos de transferência de renda, para resgatá-los da pobreza.
Segundo o PBF (em 2012), são pobres elegíveis ao recebimento de transferências no Brasil todas as pessoas com rendimentos familiares mensais inferiores a R$ 70 per capita ou famílias com rendimentos mensais per capita entre R$ 70 e R$ 140 que incluam crianças, adolescentes, gestantes ou nutrizes. Portanto, as linhas de corte que determinam a pobreza e a pobreza extrema são, respectivamente, os valores de R$ 140 e R$ 70.
Não se tem conhecimento preciso de por que esses valores foram selecionados. Mas é inevitável associá-los à linha de pobreza de US$ 1,25 (foi usado no estudo o câmbio de 2012, em torno de R$ 2) ao dia estipulada pelo banco Mundial para a pobreza extrema (e o dobro disso para a pobreza) – embora o próprio banco venha abandonando tais valores em estudos recentes. Esse ‘limite’, a despeito de que entidade o patrocina, mostra evidente irrealismo, agravado pela desvalorização do câmbio e pela marcha inexorável da inflação de alimentos. Contam em seu apoio apenas argumentos orçamentários de curto prazo: atender a um grande número de pobres com um custo baixo.
Seja como for, mesmo com um critério de pobreza e pobreza extrema já em si injustificadamente restritivo, as transferências atuais do Bolsa Família não conseguem eliminar nem a pobreza extrema, nem a pobreza.
As regras de elegibilidade excluem um bom número de pessoas: indivíduos sem filhos que (sobre)vivem com renda entre R$ 70 e R$ 140. Muitos outros são excluídos por falta de informação, registro administrativo insuficiente, orçamento limitado. De fato, nossos cálculos indicam que, computadas todas as transferências governamentais, cerca de 9% da população brasileira permaneciam em situação de pobreza em 2012 (4% em situação de pobreza extrema).
Esse ‘erro de exclusão’ provavelmente seria muito menor caso a transferência fosse um direito juridicamente exigível de todo brasileiro pobre, mas, no atual formato institucional, o programa admite arbitrariedade na seleção de quem será beneficiado. No entanto, mesmo que incluísse todos os pobres, PBF ainda não seria suficiente, pois, nos próprios termos do programa, o tamanho dos benefícios está desatrelado de compromisso explícito de eliminação da pobreza – a exceção é a pobreza extrema.
Celia Lessa Kerstenetzky
Elisa Alonso Monçores
Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede)
Universidade Federal Fluminense