Experimento que deslocou e alterou a composição de colônias de aranhas alega ter demonstrado – pela primeira vez em ambiente selvagem – algo que é tópico polêmico entre biólogos desde o século 19. A equipe de Jonathan Pruitt, da Universidade de Pittsburgh, e Charles Goodnight, da Universidade de Vermont, ambas nos Estados Unidos, montaram, em seis locais diferentes, 53 colônias da aranha Anelosimus studiosus, espécie diminuta (até 1 cm), de cor alaranjada, mais conhecida por ter fêmeas dóceis e agressivas.
Na natureza, a razão dóceis/agressivas é tal que maximiza as chances de sobrevivência da colônia. Cada um desses dois temperamentos tem um papel na comunidade. A dupla de pesquisadores acompanhou também 20 colônias que nem foram perturbadas, nem deslocadas, servindo, assim, como grupo-controle.
As A. studiosus comem, em geral, insetos, mas até restos de ratos e pássaros já foram encontrados nas teias, que podem chegar a ter o tamanho de um carro. Essa espécie espalha-se da América do Norte à do Sul.
Risco de extinção
Parte das 53 colônias ‘artificiais’ foi levada para locais bem diferentes daqueles em que elas haviam se formado. Outra parte teve a razão dóceis/agressivas original alterada. Segundo Pruitt, essas perturbações são vistas pelas colônias como possível risco de extinção.
Quando não perturbadas, essa razão responde a fatores internos e externos. Se a colônia se forma num ambiente de muita comida, a tendência é que seja dominada por dóceis, pois não há tanta necessidade de caçar. À medida que a colônia cresce, a principal ameaça à sobrevivência em longo prazo são os parasitas sociais, que roubam a comida. Nesses casos, a tendência é que aumente o número de agressivas, que os combatem e protegem a colônia.
Se a colônia começa a se formar num local de poucos recursos, a tendência é que ela seja dominada por agressivas (caçadoras). Mas aí a maior ameaça é o canibalismo de ovos, praticado pelas agressivas. Então, à medida que a colônia cresce, aumentam as dóceis. Cada colônia ajusta a razão dóceis/agressivas para o ambiente em que está.
Volta às origens
Depois de duas gerações, Pruitt e Goodnight notaram que as colônias – sem se importar com o novo ambiente – tendiam a voltar à razão dóceis/agressivas original, ou seja, aquela que maximizava as chances de elas sobreviverem no hábitat em que haviam se formado. Segundo os autores, as aranhas parecem não ter ideia de que estão num novo ambiente. E esse retorno à razão original pode até levar a colônia à extinção.
Para Pruitt e Goodnight, essa alteração mostra a seleção natural agindo em uma característica coletiva (razão dóceis/agressivas) que é passada de geração a geração e é determinante para a sobrevivência (ou não) da colônia. “Nosso estudo mostra a seleção de grupo atuando num ambiente natural – e sobre uma característica [razão] que é herdada – e que levou à adaptação em nível de colônia [grupo]”, diz Pruitt.
No artigo, os autores dizem por que esses resultados são importantes: “pesquisadores renomados têm defendido que a seleção em grupo não pode levar à adaptação do grupo [exceto em condições controladas] e que a teoria da seleção em grupo é ineficiente e falida”.
Indivíduo ou grupo?
Pelo tom, dá para perceber que seleção em grupo é assunto polêmico na biologia. Razão simplificada: a leitura mais comum da teoria proposta pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) é que a seleção natural ocorre apenas em nível de indivíduo. Mas, na chamada teoria da seleção em grupo, membros de espécies sociais exibiriam características individuais de comportamento que dariam maior ou menor chance de sobrevivência ao grupo. Ou seja, a seleção natural operaria em nível de grupo e produziria adaptações nesse nível.
Essa discussão começou com o próprio Darwin, mas ganhou fôlego a partir da década de 1960.
Mas, se a seleção natural age apenas sobre o indivíduo, como explicar, por exemplo, a cooperação de insetos sociais, como é o caso de abelhas, formigas – e, no caso, das A. studiosus. Afinal, se o que importa é o ‘eu’, por que aumentar as chances de outro indivíduo sobreviver e passar seus genes para frente, na forma de descendentes férteis? Esse já foi assunto de reportagem aqui.
Parte da explicação para a cooperação é que animais sociais são aparentados – então, ajudar o outro significa, de algum modo, ajudar a si mesmo. Pruitt e Goodnight dizem ter revelado um mecanismo complementar ao parentesco.
A polêmica sobre se a seleção em grupo é ou não válida vai continuar. Há aqueles, como o psicólogo norte-americano Steven Pinker, que nem mesmo podem ouvir a expressão. E há, agora, os resultados de Pruitt e Goodnight.
É esperar para ver. Por enquanto, há dúvidas. Mas, ao final, haverá uma certeza: ganha a biologia.
Três perguntas para Pruitt
Como diferenciar fêmeas dóceis das agressivas?
Com base no espaço que demandam. As dóceis se mantêm agrupadas; as agressivas, distantes entre si.
Qual o papel de cada uma delas na colônia?
As agressivas capturam individualmente presas, defendem a colônia e reparam a teia. As dóceis cuidam da prole.
Os senhores pretendem continuar esses experimentos com aranhas sociais? Se sim, para quê?
Pretendemos fazer um ou dois novos experimentos. Primeiramente, gostaríamos de saber como as aranhas manipulam a composição [razão dóceis/agressivas] de seus grupos. Estariam se livrando de fenótipos (dóceis/agressivas) que estão em excesso? Ou será que as que estão em excesso abandonam a colônia ou se tornam ajudantes [qualquer dócil ou agressiva que deixa de se reproduzir para ajudar outros membros da colônia]?
Não temos ainda essas respostas. Gostaríamos de poder manipular a quantidade de predadores, o número de parasitas sociais [que roubam comida da colônia] e a frequência de surtos de doenças, para testar que fatores são responsáveis pela seleção de grupo específica de cada ambiente natural. Seria resultado de apenas um fator? Ou seriam vários fatores combinados que gerariam as composições ideais?
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 320 (novembro de 2014). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista.