Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora

Fortalecer a imagem positiva de um país no exterior por meio do investimento no cinema, na música e em outras manifestações culturais pode colocá-lo em uma posição de destaque no cenário mundial e favorecer sua atuação na política internacional

CRÉDITO: IMAGENS ADOBE STOCK

Frequentemente, falamos sobre superpoderes aqui nesta seção. Mas nunca paramos para pensar sobre o que exatamente é o poder. Não há uma definição única e consensual sobre o que é o poder, mas podemos entendê-lo como a capacidade de afetar os outros para obter algo que se deseja. 

Uma das maneiras de exercer poder é por meio da violência, da força bruta, de ameaças, de coerção, do uso de armas. Um vilão que deseja fazer mal à humanidade para algum benefício próprio ou mesmo um herói que deseja combater um vilão podem utilizar seus poderes para atingir seus objetivos. 

Mas o poder não se restringe à capacidade de exercer violência e coagir inimigos. Um vilão se tornaria muito poderoso se a população passasse a adorá-lo e apoiá-lo incondicionalmente. Para conquistar isso, ele poderia contratar uma equipe de marketing que produzisse filmes contando sua história, propagandas que mostrassem um lado mais amigável da sua personalidade e ações sociais que evidenciassem sua humanidade. Assim, ele poderia construir uma imagem pública de um homem bondoso e heroico, uma figura em que as pessoas se inspiram e pela qual se deixam influenciar, como o Capitão Pátria, da série de TV e de quadrinhos The Boys.

Essa forma de poder não violento é tão importante que recebeu um nome especial. Cunhado pelo cientista político e professor da Universidade Harvard (Estados Unidos) Joseph Nye, o termo soft power (poder brando, em tradução livre) se refere à capacidade de influenciar o comportamento ou os interesses de outros por meios culturais e ideológicos. 

Podemos dizer que um país faz uso do seu ‘poder brando’ quando obtém resultados favoráveis na política internacional graças à difusão da sua cultura e seus valores por meio do cinema, da música, da literatura etc. 

Em seus diálogos com governantes, principalmente chineses, Nye explica que a maior parte do poder brando de um país vem da sua população civil e não do governo. Por isso, cabe ao país que deseja aumentar seu poder brando investir em cultura e dar liberdade e autonomia às pessoas para que elas tenham espaço para produzir arte em todas as suas formas e exportá-las para o mundo.

A teoria do soft power de Nye ainda encontra alguns obstáculos no campo acadêmico. São poucos os estudos científicos que se utilizam dessa teoria como instrumento de análise e há uma grande dificuldade de se medir qual é o verdadeiro impacto desse poder. 

Mesmo assim, o soft power parece ser uma ferramenta interessante para analisar o posicionamento de alguns países no cenário internacional.

Estados Unidos: seu jeito de viver e seus vilões

Em 1947, após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos declararam que iriam investir fortemente na luta contra o avanço do comunismo na Europa. Esse posicionamento marcou o início de uma era de enorme tensão em todo o mundo, a Guerra Fria. 

Embora sem conflitos militares diretos, a rivalidade política e ideológica entre Estados Unidos e União Soviética levou essas duas potências a uma corrida armamentista sem precedentes. 

Nesse período, a indústria cinematográfica dos Estados Unidos e outras mídias (como os quadrinhos) foram se consolidando como poderosas armas contra o socialismo soviético. De um lado, construía-se uma imagem dos russos (e comunistas em geral) como vilões, símbolos da maldade. Do outro lado, estavam os norte-americanos, sempre resolvendo crimes, ajudando outras nações, lutando bravamente em guerras em nome da liberdade e até salvando o mundo de extraterrestres.

Além de reforçar essa imagem heroica no cenário internacional, Hollywood redesenhou o significado de ‘sucesso’. Por meio dos filmes, fomos ensinados que ser bem-sucedido significa estar inserido em um padrão específico de família, de beleza, de trabalho, de consumo, de religião, de normas a serem seguidas. E esse ‘modo de viver americano’ foi se tornando objeto de desejo, uma meta de vida, de pessoas do mundo inteiro.

O Brasil e diversos outros países foram fortemente influenciados em várias áreas (como a moda, a alimentação, a comunicação, a produção cultural). E, até hoje, há quem veja os Estados Unidos como uma nação superior, cuja cultura e política são modelos a serem copiados. 

Após os ataques do dia 11 de setembro de 2001, em que dois aviões controlados por terroristas atingiram e destruíram as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, os Estados Unidos declararam seu mais novo inimigo: os terroristas de etnia árabe (ou da religião Islã). A partir desse momento, o país iniciou sua ‘guerra ao terror’, uma campanha militar considerada desastrosa por muitos especialistas que provocou conflitos e inúmeras mortes em vários países, principalmente do Oriente Médio. 

Paralelamente a esse uso de poder violento, vimos uma enxurrada de vilões árabes e muçulmanos nas telonas. Essa vilanização foi tão intensa e bem-sucedida que gerou uma onda de islamofobia em todo o mundo, levando as pessoas a associarem os muçulmanos (aqueles que seguem o islamismo, a segunda maior religião do mundo, com cerca de 1,6 bilhão de fiéis) a terrorismo e explosões.

Hallyu: a onda coreana

O poder de influenciar comportamentos por meios culturais também pode ser evidenciado atualmente pelo Hallyu (ou onda coreana, como batizado pela China). Você provavelmente já ouviu falar de uma de suas expressões, o K-pop (a música pop coreana), que conquistou uma legião de fãs no Brasil e no mundo. 

Você também deve ter ouvido falar no filme Parasita, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, que surpreendeu o mundo inteiro ao se tornar o primeiro filme asiático a levar o Oscar de melhor filme, além dos prêmios de direção, roteiro original, filme estrangeiro, montagem e direção de arte. 

Em outras áreas, a Coreia do Sul também tem marcado presença. No universo dos cosméticos, os produtos e a rotina de beleza coreanos (K-beauty) vêm influenciando o mundo todo, bem como a moda coreana (K-fashion), as telenovelas coreanas (K-drama) e os jogos e as tecnologias coreanos.

O grupo BTS é um dos grandes expoentes do K-pop, a música pop coreana, que conquistou uma legião de fãs no Brasil e no mundo

Esses acontecimentos não são fatos isolados e coincidentes. Conta-se que, em 1993, quando foi lançado Jurassic Park, de Steven Spielberg, o sucesso foi tão grande que o filme ocupou todas as salas de cinema coreanas por três meses, sem dar espaço à exibição de qualquer outra obra. O lucro de Hollywood com apenas um filme era equivalente à exportação de 1,5 milhão de carros Hyundai. 

No ano seguinte, o governo aprovou uma nova lei do audiovisual, que estabelecia cotas de filmes nacionais nos cinemas e programação nacional na televisão, além de garantir um alto investimento para a produção e distribuição dessas obras e a realização de festivais.

Com o auge da crise financeira asiática, em 1997, as políticas de exportação do audiovisual na Coreia do Sul se intensificaram. Parte considerável dos investimentos se voltou para a transmissão e distribuição desses produtos, o que contribuiu para que eles alcançassem todo o mundo. 

Se o investimento foi enorme, o retorno para a Coreia do Sul foi ainda maior. Pesquisas e notícias afirmam que o K-pop já trouxe bilhões de dólares para o país. Só o grupo de música BTS movimenta cerca de 3,7 bilhões de dólares ao ano na economia sul-coreana e foi o principal motivo que levou 1 a cada 13 turistas a visitarem a Coreia do Sul em 2018. Dados mostram que, entre 2007 e 2017, o país saltou do 30º para o 6º lugar dentre os maiores mercados de música do mundo, superando o Brasil.

O Hallyu também teve impacto nas relações internacionais. Pesquisas apontam que a cultura coreana, de fato, se tornou um instrumento de diplomacia da Coreia do Sul, construindo uma imagem positiva do país. Os integrantes do grupo BTS já foram convidados para discursar na Organização das Nações Unidas, fazendo um apelo à vacinação contra a Covid-19, e para visitar a Casa Branca, onde puderam falar sobre o racismo sofrido por asiáticos nos Estados Unidos. 

Brasil e o complexo de vira-lata

No Brasil, vivemos um movimento contrário. Se o vira-lata caramelo é um símbolo nacional, o ‘vira-latismo’ é um mal que nós, brasileiros, ainda carregamos. Cunhado pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, o termo ‘complexo de vira-lata’ se refere à inferioridade com a qual os brasileiros enxergam a si mesmos e ao Brasil em relação aos demais países. 

No aspecto cultural, essa inferiorização é bastante visível. Você já deve ter visto vários brasileiros desprezarem todo tipo de manifestação cultural do Brasil, como o carnaval, o samba, o pagode, o funk, o cinema nacional, as festas e danças brasileiras, o nosso folclore, a rica e vasta cultura dos povos originários. 

Paralelamente, a cultura sempre foi uma área com poucos investimentos no Brasil, chegando em 2022 ao valor pífio de 1,67 bilhão de reais. A Coreia do Sul, com uma população cinco vezes menor, investiu 6,4 bilhões em 2019.

Parte do problema é que a população desconhece uma importante política pública de fomento à arte: a Lei Rouanet. Existem muitas críticas pertinentes a essa lei, mas nenhuma delas justifica a sua extinção.

A Lei Rouanet permite que artistas captem dinheiro de empresas e pessoas para suas produções artísticas. O valor que uma empresa investe pode ser abatido do seu imposto de renda (com um limite de até 4% do valor total do imposto). 

Além de o dinheiro não sair diretamente dos cofres públicos (e sim de entes privados), esse investimento tem um papel importantíssimo na nossa economia. Shows, filmes, peças, exposições e outros eventos geram empregos para inúmeros profissionais, fomentam o turismo cultural e os negócios locais e proporcionam entretenimento à população.

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas mostra que, a cada real captado pela Lei Rouanet, a sociedade recebe R$ 1,59 de volta. Dos 31,22 bilhões de reais que o país deixou de arrecadar em impostos entre 1993 e 2018 em consequência dessa lei, estima-se que retornaram 49,78 bilhões para os cofres públicos. 

O Brasil tem tudo para se consolidar como uma potência cultural e usar esse ‘poder brando’ para melhorar sua economia e obter vários benefícios nas suas relações internacionais. Mas, para isso, precisamos aprender a valorizar nossa cultura, reconhecer sua importância econômica, política, diplomática e social, e cobrar mais investimentos.

Se a onda brasileira ainda não veio para chacoalhar o mundo, é mais por falta de investimento e políticas públicas do que de artistas geniais. Isso nós temos de sobra!

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