Debaixo do tapete da ciência

Instituto de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Criado pela Nav Reportagens, o podcast Ciência suja se propõe a apresentar histórias que envolvem fraudes, má interpretação de modelos científicos e uso equivocado de resultados de pesquisa

O resquício de homem moderno que vive em nós clama por uma ciência salvadora, que trará de outro plano a solução para os males que nos afligem. Quando esse homem moderno abraça o nosso primitivo, aquele que luta de maneira cega pela sobrevivência, fica fácil esquecermos que a ciência passa fundamentalmente pela escolha de um método adequado e pela validação por uma comunidade bem treinada e atenta aos detalhes imprescindíveis.

A ciência é uma construção social, praticada por seres humanos. Ao contrário de como gostaria o velho Descartes, somos razão e emoção coabitando um mesmo corpo, de maneira indissociável. Quando deixamos de lado os princípios básicos que estabelecemos para a prática científica, aqueles que permitem o aproveitamento de seus potenciais benefícios, essa ciência pode ser tornar beeem “suja”, e o discurso científico se traveste de algo extremamente nocivo. É com o nome de Ciência suja, sem eufemismo algum, que o podcast criado pela produtora Nav Reportagens se propõe a apresentar histórias que envolvem fraudes, má interpretação de modelos científicos e uso equivocado de resultados de pesquisa ainda pouco explorados.

A pílula mágica

O assunto do primeiro episódio, intitulado “A farsa da pílula do câncer”, abre a temporada de maneira magistral. Em uma conversa um pouco mais informal – aquela velha conversa de bar com os amigos –, boa parcela da população resolveu comprar a briga da pílula mágica, foi justamente quando a coisa começou a “dar ruim”. Se hoje olhamos atônitos os absurdos feitos em prol do uso da cloroquina durante a pandemia de COVID-19, devemos lembrar que o buraco já foi ainda mais fundo. A fosfoetanolamina sequer havia passado pelos testes pré-clínicos e sua produção era feita em um laboratório universitário, carente dos elementos mais básicos para a produção de um fármaco. Assistiu à série Breaking Bad? Como ex-funcionário de uma indústria farmoquímica, eu poderia afirmar sem grandes ressalvas que a metanfetamina de Walter White era produzida em condições muito mais dignas no que diz respeito a controle de processo e garantia da qualidade.

A primeira temporada do podcast parte de seis episódios que se iniciam com a fosfoetanolamina e, na sequência, permeiam assuntos como a eugenia, a indústria de tabaco, os preconceitos enfrentados pelos portadores de AIDS, até chegar à intrigante saga dos antivacina e aos comportamentos catastróficos adotados por políticos durante a pandemia. Na sequência, uma série de debates na forma de mesacasts completa a temporada, trazendo assuntos de interesse não só para o grande público, como também para aqueles que habitam o universo acadêmico – destaque para ‘o mercado da ciência’ e ‘mulheres na ciência’.

Pegada investigativa

Ciência suja tem o apoio do Instituto Serrapilheira, é bem ambientado e seu conteúdo é passado de forma clara e instigante. Além disso, a pegada de jornalismo investigativo ajuda a prender ainda mais a atenção do ouvinte. Entrevistas variadas complementam o cenário, como no episódio sobre eugenia, que conta com a participação de José Renato Kehl, neto de Renato Kehl, um dos ícones do pensamento eugenista no Brasil. José Renato, que nada tem a ver com as ideias do avô, traz histórias e documentos que ajudam na compreensão da personalidade de Renato. Ademais, figuras ativas na ciência brasileira são presença constante, como o químico Luiz Carlos Dias, a microbiologista Natalia Pasternak e a biomédica Helena Nader, atual presidente da Academia Brasileira de Ciências.

Diria que, com uma bela produção, Ciência suja contribui para melhor compreensão dos processos científicos e dos potenciais malefícios não só da ciência malfeita, mas daquela divulgada de maneira imprecisa e irresponsável.

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