40 anos de resistência

Jornalista ICH

Fundadores da revista Ciência Hoje, os físicos Alberto Passos Guimarães e Ennio Candotti e o neurocientista Roberto Lent relembram como tudo começou, destacam a importância do projeto na mobilização de cientistas pela abertura política, com textos que figuram até na Constituição

O cenário era a redação de uma importante revista de divulgação científica, no 45º andar de um prédio em Nova York. Os personagens: um editor estadunidense para lá de tarimbado e um jovem cientista brasileiro que buscava conselhos para estruturar e lançar a primeira revista de divulgação científica do Brasil dali a poucos meses. “Esqueça isso!”, vaticinou o editor, e o rapaz saiu de lá desanimado, de cabeça baixa. Mas o fato é que meses depois, em julho de 1982, era lançado o primeiro número de CIÊNCIA HOJE. Curioso é que o tal editor não foi o único a decretar que era missão impossível produzir, em tão pouco tempo, uma publicação brasileira multidisciplinar escrita por cientistas para o público em geral. Boa parte da comunidade científica nacional nem acreditava que o projeto passaria daquele número 1 lançado na 34ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Quarenta anos depois, nesta entrevista, os físicos Alberto Passos Guimarães e Ennio Candotti e o neurocientista Roberto Lent (aquele mesmo desapontado em NY), fundadores da revista junto com o geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014), contam como nasceu a ideia do projeto ao final dos anos 1970, ainda na ditadura militar, da sua importância na luta pela redemocratização e para uma transformação da SBPC e da política científica do país. Relembram também muitos dos cientistas e intelectuais essenciais para o projeto ir à frente – não sem muitos tropeços, crises e ameaças de extinção –, dando frutos como a Ciência Hoje das Crianças, o Jornal da Ciência e a análoga argentina da publicação, a Ciencia Hoy

CIÊNCIA HOJE: Como nasceu a ideia de fazer uma revista de divulgação científica em plena ditadura militar?

ROBERTO LENT: Em 1976, eu me tornei secretário regional da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] no Rio de Janeiro, e havia um sentimento juvenil de nós todos de luta contra a ditadura militar. Uma das coisas que fizemos foi uma série de conferências chamada “Ciência às Seis e Meia”, em que chamávamos pesquisadores para falar para o que acreditávamos ser um grande público, no auditório da Academia Brasileira de Ciências, mas, na verdade, eram umas 20 ou 30 pessoas, entre estudantes e outros colegas interessados no assunto. Vejo isso como o começo da nossa própria sensibilização para a importância da divulgação científica. Criamos então, no âmbito da Secretaria Regional da SBPC no Rio, um grupo para avaliar a possibilidade de criar uma revista de divulgação científica. A “Scientific American” era, de certo ponto de vista, o modelo. Depois, eu fui para o exterior para fazer o pós-doc, e o Ennio me sucedeu como secretário regional da SBPC no Rio, em 1979. E foi ele quem, realmente, viabilizou a criação da revista, anos depois. Ennio teve uma persistência admirável de tornar aquilo perene, mas a ideia começou com o grupo de jovens que tinha vontade de levar ciência para o grande público.

ALBERTO PASSOS GUIMARÃES: Minhas lembranças são um pouco diferentes das do Roberto, e vejo um protagonismo maior dele nessa história. Como primeiro secretário regional da SBPC do Rio, ele não se limitou a cobrar dos sócios, que era o esperado. Criou uma diretoria, da qual faziam parte Reinaldo Guimarães, Ennio Candotti, Mirian Limoeiro e eu. Nós nos reuníamos no bar do “Manel” (no campus da Praia Vermelha da UFRJ) e, logo, conseguimos uma sala num prédio ali ao lado, que era do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (a casa 27, que anos mais tarde se tornou sede da CH). Essa diretoria regional passou a ser uma entidade com uma ambição muito maior e realizou uma série de ações, como o “Ciência às Seis e Meia” e muitas outras conferências. Além dessa ligação, Roberto e eu éramos vizinhos em Laranjeiras e nos encontrávamos constantemente para conversar, estudar música e falar outras abobrinhas. Em 1978, tivemos uma conversa sobre divulgação científica. Desde a adolescência, eu era leitor do físico e divulgador George Gamow (1904-1968) e, esporadicamente, da revista “Scientific American”, criada em 1845, bem anterior à nossa (risos). Mais tarde, ele me surpreendeu, anunciando que tinha feito uma proposta de uma revista de divulgação científica. Começamos a reunir um grupo de pessoas interessadas, e em fins de 1978, chegamos ao documento “Ciência Hoje – uma revista de divulgação científica”, que distribuímos entre os membros da comunidade científica, com surpreendente grau de concordância das pessoas, que viam na divulgação científica também uma maneira de buscar adeptos, e fazer propaganda da ciência e buscar apoios dos governos para a ciência. Apesar disso tudo, o projeto não avançou na época.

REINALDO GUIMARÃES, membro do conselho editorial do Instituto Ciência Hoje e professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ

“Por que a CIÊNCIA HOJE apareceu em 1982, de onde veio aquela inspiração. Em 1982, a política científica brasileira mais institucionalizada era muito nova e muito recente, CNPQ havia sido fundado em 1951, menos de 30 anos antes. Foi um momento em que a produção científica brasileira apareceu com muita força. O regime militar já estava em frangalhos, e isso estimulou também muito esse tipo de iniciativa. A comunidade científica estava empoderada para fazer coisas. Havia ainda o papel que a SBPC exercia naquele final dos anos 70 e 80 tanto na política científica como na política mesmo. Acho que tudo isso contribuiu para a criação de uma revista de divulgação feita no Brasil e assinada por cientistas brasileiros. Havia as revistas estrangeiras, mas isso era uma novidade aqui.

No início, houve uma repercussão muito grande, e a revista teve um papel fundamental na divulgação científica, ainda que seja difícil de medir. Claro que certos acontecimentos com uma dimensão social muito grande têm um impacto maior. A pandemia de covid-19, por exemplo, fez com que a divulgação científica no Brasil e no mundo tivesse um impulso enorme, mas a Ciência Hoje cumpriu e cumpre um papel poderoso nessa história. E mais: hoje há esse personagem de divulgador científico, e acho que a Ciência Hoje teve um papel importante em formar gente dessa categoria.”

ENNIO CANDOTTI: Eu acrescentaria que se juntaram vários projetos de jovens participativos daquele tempo, que podemos chamar de resistência. Eu tinha acabado de chegar da Itália, onde, em 1973, vivi em Milão, trabalhando com a “Sapere”, uma revista de divulgação científica muito engajada politicamente. E voltei para o Brasil com o todo o gás para pensar em divulgação científica. Na época, Roberto e Alberto estavam, de fato, pensando em algo semelhante, e se juntaram várias correntes tanto de divulgação científica como de interdisciplinaridade, o que é algo que acho muito importante. Os irmãos e antropólogos Otávio e Gilberto Velho (1945-2012), o médico e geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014), o historiador José Murilo de Carvalho… Tivemos vários aportes de cientistas sociais e de jovens pesquisadores de diferentes áreas. O clima político era favorável a essas manifestações porque havia resistência, havia oposição, havia contra quem trabalhar.

Otávio Velho, antropólogo, foi editor científico da Ciência Hoje e membro do Conselho Diretor do Instituto Ciência Hoje

“A CIÊNCIA HOJE foi e continua sendo fundamental para a divulgação científica no país. Quando foi lançada, há 40 anos, não havia nenhuma revista desse tipo no Brasil, e até hoje continua a ser uma publicação muito importante. É difícil a relação entre os cientistas e o grande público. A revista consegue fazer isso muito bem.
Uma das virtudes da CIÊNCIA HOJE foi juntar gente das mais diversas áreas. Conseguir essa multidisciplinaridade é raro. Eu, como cientista social, fico particularmente muito feliz e grato por ter me juntado a colegas de outras áreas.
Fui um dos pioneiros na fundação da revista. Até hoje me lembro quando Roberto Lent foi ao Museu Nacional, onde eu trabalhava, me convidar para  participar da então iniciada Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A partir desse trabalho na regional, veio a ideia da revista. Lá, fiz amizades muito importantes, que mantenho até hoje. Então, a CIÊNCIA HOJE, para mim, foi importante em todos os sentidos. “

CH: O contexto político então teve grande peso na criação da revista…

EC: Sem dúvida. Como Roberto e Alberto mencionaram, o passo central pode ter sido quando Roberto assumiu a Secretaria Regional da SBPC do Rio, iniciando um movimento que juntava gente de ciências, de divulgação, de política, desafiando também a SBPC a se renovar e a participar ativamente do movimento pela redemocratização. A SBPC era um tanto parada, centrada em São Paulo e dominada pelo físico Oscar Sala (1922-2010), um santo nome, pessoa muito querida, mas, na época, um entrave ao engajamento da SBPC nos movimentos pela redemocratização. O Sala era muito cauteloso e nos puxava as orelhas sempre que achava que estávamos fazendo alguma coisa que não era própria para SBPC. E nós não ouvíamos, fomos para frente e politizamos a SBPC. Sim, politizamos, essa é a palavra correta, tanto que, poucos anos depois, em 1979, mudamos o estatuto da SBPC para que ela tivesse dimensões nacionais, com participação de base mais ativa dos com secretários regionais e dos sócios. O mundo estava se transformando, e estávamos dando a nossa pequena contribuição. Esse movimento foi essencial para criar o clima que justificou todos os sacrifícios, as noites mal dormidas e os esforços necessários para criar uma revista, movendo montanhas.

O mundo estava se transformando, e estávamos dando a nossa pequena contribuição. Esse movimento foi essencial para criar o clima que justificou todos os sacrifícios, as noites mal dormidas e os esforços necessários para criar uma revista, movendo montanhas_ENNIO CANDOTTI

CH: Depois de toda essa movimentação, como, de fato, se deu o lançamento da revista em 1982? Como vocês se prepararam?

RL: Eu estava nos Estados Unidos fazendo pós-doc entre 1979 e 1982. O Ennio me ligou e disse: você precisa investigar aí o que os americanos estão fazendo de revista de divulgação científica. Eu lembro que fui a uma [redação], do grupo Time-Life, no 45º andar de um arranha-céu em Nova York, acho que em março de 1982. Não sei como consegui ser recebido pelo editor e expliquei a ele que estávamos criando uma revista [de divulgação científica no Brasil] e queríamos lançá-la em julho. Ele morreu de rir, me perguntou qual era a pauta, e eu não sabia.

APG: Você contou que ele respondeu “forget it”…

RL:Forget it”. Exatamente. E voltei de lá todo desanimado. Contei essa história para o Ennio, que já estava a todo vapor com o Lynaldo Cavalcanti (então presidente do CNPq), com quem ele conseguiu dinheiro para fazer o número zero. Na reunião da SBPC daquele ano, em Campinas, começamos a colher assinaturas. Eu já estava de volta, e tivemos uma oposição ferrenha da Carolina Bori (pesquisadora e psicóloga, 1904-2004). Ela dizia: “Como que vocês estão pedindo dinheiro para fazer assinatura se só têm o suficiente para publicar o número zero? A revista vai morrer!”.

APG: É preciso lembrar que foi dois anos antes disso, em 1980, que o projeto começou a se mover. A SBPC, então presidida pelo físico José Goldemberg, criou uma comissão para estudar a criação de uma revista de divulgação, com Darcy [Fontoura], José Reis, Henrique Krieger e eu. O grupo reuniu-se no Rio algumas vezes e fez contatos com editoras, especialmente com a Nova Fronteira; foi feito um modelo da revista. Finalmente, em 1982, surgiram as condições que viabilizaram o início do projeto: o CNPq concedeu 10 mil cruzeiros, o suficiente para o primeiro número. O então presidente da SBPC, Crodowaldo Pavan (geneticista, 1919-2009), se entusiasmou com a ideia. E a diretoria da SBPC indicou os quatro editores que iriam dirigir a revista: Darcy, Ennio, Roberto e eu. Um conselho editorial com nomes de diferentes estados foi criado.

EC: Pavan estava do nosso lado, mas o Sala não. Dizia que devíamos passar um tempo na “Scientific American”. Mas fizemos e, na reunião anual, vendemos 10 mil exemplares do número zero e ainda fizemos uma segunda edição.

APG: A revista foi um sucesso notável na reunião anual. Eu me lembro de muitas pessoas olhando e não acreditando naquela coisa bonita, feita no Brasil. Era uma surpresa mesmo. Apesar disso, me lembro de ter ido a Belo Horizonte participar de um evento para apresentar a revista e levei referências de revistas que pararam no número 1. Há infinitas revistas que brilharam uma única vez. Naquele momento, apesar de já termos conseguido dinheiro para um segundo número com a Finep, nós éramos candidatos a esse grupo seleto de revistas (risos).

EC: Acreditar que a revista não continuaria era uma reação muito própria de quem desconhecia que o nosso motor era político. Nós estávamos participando de um movimento de resistência e de afirmação da comunidade científica na construção da abertura. Naquele mesmo ano, lembram que houve o atentado do Riocentro? Estávamos em um momento muito sensível da política local e achávamos que a comunidade científica poderia e deveria participar com uma certa presença.

CH: A revista sofreu com a censura ou algum tipo de pressão do regime militar?

APG: Na busca por anúncios das empresas estatais, encontramos pressões contrárias: é preciso lembrar que o governo, especialmente através do Serviço Nacional de Informações (SNI), pressionava as empresas estatais a não contribuírem com anúncios. Somente recentemente vimos materiais publicados pelo SNI divulgando entre os órgãos do governo a notícia do lançamento da CH!

É preciso lembrar que o governo, especialmente através do Serviço Nacional de Informações (SNI), pressionava as empresas estatais a não contribuírem com anúncios_ALBERTO PASSOS GUIMARÃES

EC: O Lynaldo levou um puxão de orelhas por ter financiado a revista, mas ele desconversava. Dizia que era uma questão de divulgação científica, que era preciso fazer. Sim, o SNI observava, mas o Golbery (do Couto e Silva, 1911-1987, um dos criadores do SNI e ministro do governo militar) conhecia o pai dos irmãos Velho e até assinou a revista. Tínhamos uma xerox do cheque assinado por ele (risos). Havia contradições. Respeitavam o que estávamos fazendo, mas nos observavam por estarmos militando por uma abertura mais avançada do que aquela que eles queriam ver realizada. Mas não sofremos censura. Esse clima não ocorria mais em 1982, só com grupos localizados como o do Riocentro, mas já estavam sendo isolados. Claro que com o atentado, tivessem obtido sucesso, a história poderia ser diferente, mas a bomba estourou no colo deles. Mas esse contexto é importante porque sem esse motor, esse engajamento, não teríamos alcançado a mobilização da comunidade científica em uma linha alternativa à da centralização paulista da SBPC. Pavan estava conosco e, no país, estava se preparando a abertura para 1985. Lembro que em 1984, publicamos o número sobre a Amazônia. E era um texto denso.

CH: Como já mencionaram aqui, o projeto de criar a Ciência Hoje teve oposição por haver conflito de forças na SBPC. Podem falar mais sobre isso?

APG: A impressão que eu tenho é que esse conflito entre a SBPC centralizada em São Paulo e a SBPC com sedes no Brasil todo estava no pano de fundo sim. Mas, com o nascimento de Ciência Hoje, demos um passo tão grande que se abriu um horizonte tão mais amplo que essa discussão, que, apesar de não ter desaparecido, perdeu muito do sentido, porque tínhamos no conselho [editorial] representantes do Brasil todo, e que vinham às nossas reuniões. Além disso, a partir de 1985, passamos a ter sucursais, porque, como a sede ficava no Rio, a tendência era ter muitos autores daqui. As sucursais garimpavam autores em outros estados, o que deu um toque mais nacional, principalmente as sucursais de Belo Horizonte e Recife.

RL: Outro aspecto também é que, da mesma forma que a SBPC era centralizada em São Paulo, a Academia Brasileira de Ciências era centralizada no Rio. Então havia uma divisão do poder na comunidade científica. Acho que a existência da Ciência Hoje contribuiu muito para quebrar essa polarização dentro da comunidade científica e abriu o caminho para uma aliança entre essas duas entidades, que hoje funcionam com muita sintonia. São muito combativas juntas, pela democracia, pela política científica de Estado, e isso começou um pouco na nossa época.

EC: Eu só queria registrar que, em 1979, a mudança do estatuto da SBPC foi o passo-chave. Fomos até às seis horas da manhã, atravessamos uma noite, para mudar esse estatuto e dar ao conselho uma presença nacional, ser eleito por regiões, e não eleito só pelos mesmos nomes. Isso deu força às regionais. Ainda hoje há resistência ao conselho por representação regional. É incrível que passados 30, 40 anos as mesmas pessoas que naquela época se opunham à mudança do estatuto na direção ainda existam. Foi uma virada importante.

CH: Ter cientistas escrevendo para um público leigo foi um desafio? Ainda é? E a participação dos jornalistas?

EC: Há três etapas. A primeira: a hipótese de que cientistas escrevam diretamente para o leitor, ou seja, do produtor ao consumidor, tinha a meta de dar à divulgação científica uma outra dimensão, que não estava sendo explorada na divulgação científica feita por jornalistas. Nunca fomos contra os jornalistas, pelo contrário.  Nós, simplesmente, ocupamos outra raia, outra faixa que o jornalista não ocupava. Eu vou dar um exemplo: cientistas podem dizer que não sabem; jornalistas não podem. Ou o jornalista escreve aquilo que sabe ou não escreve. Enquanto que ao cientista é permitido dizer colocar dúvidas no texto: “Olha, até aí vai, mas depois eu não sei…” Outro ponto: sempre tivemos o cuidado de recolher artigos dedicados a pesquisas em curso ou pesquisas avançadas. Evitávamos publicar artigos de revisão.

APG: Foi um lento aprendizado: muitos membros da comunidade científica, ao apoiar o projeto, viam imediatamente que era importante ter uma linguagem adequada ao público não especializado. Muitos especialistas desenvolveram essa capacidade de comunicação. A divulgação científica no Brasil não tinha um peso importante, destacando-se o trabalho pioneiro de José Reis (biólogo, 1907-2002). Chamava a atenção também, e negativamente, que o noticiário sobre ciência fosse principalmente baseado em telegramas de agências estrangeiras, descrevendo sempre desenvolvimentos alcançados em países estrangeiros, especialmente no mundo desenvolvido. Mas, hoje, cresceu muito o número de cientistas que escrevem para o grande público, em parte por contribuição da Ciência Hoje. E tanto dentro da Ciência Hoje e nos outros órgãos, a interação com os jornalistas foi vital. O número de cursos de informação e de divulgação científica explodiu nas últimas décadas, mudou muito esse quadro. E acho que demos uma contribuição para isso. Internamente, havia essa interação entre cientistas e jornalistas.

APG: Sim, a gente queria que os pesquisadores se colocassem dentro dos artigos.

EC: Desde o início tivemos dois jornalistas: o Argemiro Ferreira e o Sérgio Flaksman. Sérgio reescrevia os artigos redigidos de forma um tanto azeda pelos cientistas, e o Argemiro dava um tom mais dinâmico e mais jornalístico.

APG: Mas é verdade que havia alguns cientistas que não toleravam isso, não queriam que mexessem e pronto.

Uma coisa importante é que conseguimos construir uma área de convívio e de compartilhamento entre cientistas e jornalistas porque as práticas das duas categorias são diferentes por natureza_ROBERTO LENT

RL: Uma coisa importante é que conseguimos construir uma área de convívio e de compartilhamento entre cientistas e jornalistas porque as práticas das duas categorias são diferentes por natureza. Não que um seja ruim ou o outro bom, mas, por exemplo, os tempos dos jornalistas são muito diferentes dos tempos dos cientistas. Os cientistas escrevem e reescrevem, uma coisa para sair em três meses. O jornalista tem que escrever algo para ficar pronto em duas horas. E a gente conseguiu, dadas as características da revista, que era mensal, uma mediação, uma intermediação interessante do cientista com o jornalista. Outro aspecto é a linguagem, obviamente. O cientista escreve duro, técnico, difícil de compreender, e o jornalista quer o contrário. E a revista proporcionou um ambiente de tolerância, vamos dizer, com as manias dos dois lados. Do ponto de vista da comunidade científica, isso foi muito importante porque permitiu que o cientista compreendesse que o jornalista não é ruim porque tem que terminar um texto em duas horas, é da natureza do trabalho dele. Assim também, o jornalista aprendeu que o cientista tem um tempo. É como o Ennio disse, ele pode dizer não sei. Isso significa o seguinte: eu vou verificar e, para eu verificar, preciso de uns quatro ou cinco dias para olhar a literatura correspondente. E o jornalista não pode esperar. Essa dicotomia, o convívio desses dois personagens, eu acho que foi um ganho que tivemos com a Ciência Hoje. Depois apareceram várias outras revistas, a da Fapesp, as institucionais, a Superinteressante… Isso acentuou um pouco a compreensão dos cientistas de que eles tinham que se debruçar sobre essa tarefa de divulgar ciência. E aí apareceram cientistas escrevendo em vários lugares. O pioneiro foi o José Reis, que todos nós conhecemos, mas depois vários outros nomes começaram a se dedicar a escrever para a grande imprensa ou revistas de público amplo. E eu acho que a Ciência Hoje foi pioneira nessa direção, de como juntar as duas partes e criar um produto administrável.

JOSÉ MONSERRAT FILHO, integrante do primeiro conselho editorial da revista e editor do Jornal da Ciência

“O Brasil não tinha, naquela época, uma revista de ciência. A revista tinha novidades importantes como ter os próprios cientistas escrevendo, o que na época era muito raro. A CIÊNCIA HOJE foi um dos meios para promover as ideias da comunidade científica, que era muito desunida e não tinha organização – isso começou a mudar naquela época.

O Jornal da Ciência [lançado em 1985] foi uma iniciativa minha. Eu propus ao Ennio Candotti a criação de uma espécie de um boletim que cresceu, depois, para ser um jornal. Foi muito bom. Exerceu um grande papel na SBPC. Era mais simples de fazer e chegava mais rapidamente às pessoas do que a revista.”

CH: A revista chegou a ter uma edição com tiragem de 55 mil exemplares, mais do que alguns jornais diários impressos hoje. Ciência atraía tanta atenção?

APG: Havia poucas alternativas à época ou ausência de alternativas. A revista era única e atraía muita atenção. Mas minha resposta é que isso foi um mistério, um milagre. Também havia o prestígio social da SBPC, que cresceu muito nos anos de contestação e no final da ditadura.

EC: Tínhamos revistas com grandes tiragens. Eram enviadas às bancas, em um grande sacrifício, com a volta de um número grande de exemplares. Uma equação que hoje seria tratada de outra forma. Mas não tínhamos mesmo muita competição. A [editora] Abril tentou lançar uma revista e fracassou, acho que era uma adaptação da “Discovery”. A Superinteressante veio para substituí-la depois.

CH: Então a revista teve força em meio ao processo de redemocratização?

EC: Era 1984, e havia um movimento pelas diretas crescendo, pela redemocratização. E a Ciência Hoje estava na linha de frente dos manifestos pró-democratização. A revista estava bastante engajada, era objeto de atenção e de militância. E tinha a marca da SBPC que, naquela época, graças a nossa interferência e à Ciência Hoje, contribuiu muito para isso, foi levada a participar desse movimento pela redemocratização. Está escrito nas páginas da revista, basta ver os números de 1983 e 1984, que são bastante engajados no processo que estava ocorrendo. Nós queríamos que a ciência tivesse um espaço no novo governo. E de fato se criou o Ministério de Ciência e Tecnologia. Não quero dizer que foi o resultado da nossa pressão ou da Ciência Hoje, mas a nossa gota de colaboração foi dada e articulada, e com detalhes de como queríamos colocar no programa de governo, apesar do José Sarney. Nossas negociações tinham sido com o Tancredo Neves (1910-1985). Também é relevante a participação da SBPC e da Ciência Hoje na Constituinte de 1988. Capítulos inteiros da Constituição vieram da Ciência Hoje, eu tive oportunidade de escrever sobre isso recentemente. São trechos inteiros. Meio ambiente escrito pelo Angelo Machado (médico e entomologista, 1934-2020, editor da sucursal de Minas Gerais); capítulo sobre índios, a violência, o papel da mulher… Tudo aquilo estava nas páginas da Ciência Hoje e foi quase que transcrito para Constituição. Tudo foi preparado regionalmente, com aportes de Pernambuco, do Pará, no Rio Grande do Sul, de Minas Gerais… O capítulo da C&T na Constituição e a permissão para criação de fundações de amparo à pesquisa foram bandeiras levantadas pela Ciência Hoje.

Capítulos inteiros da Constituição vieram da Ciência Hoje, eu tive oportunidade de escrever sobre isso recentemente_ENNIO CANDOTTI

CH: Podem falar sobre a criação da Ciência Hoje das Crianças? Havia quem achasse que cientistas escrevendo para crianças não daria certo

EC: Há várias versões. A oficial é de que a revista foi criada e não se deu muita atenção aos que não queriam. A versão alternativa é que Gian Calvi (ilustrador, 1938-2016) e eu éramos leitores, quando pequenos, do “Corriere dei Piccoli“, um um tabloide que formou os pequenos na Itália. Então pensamos em fazer um “Corriere dei Piccoli“, e ter um bem-sucedido ilustrador infantil era chave. Alguns artigos eram uma adaptação dos textos escritos para a Ciência Hoje. E deu certo.

APG: Uma pessoa do nosso círculo, gente do bem, do nosso meio, quando viu essa proposta do Ennio, deu uma gargalhada, tão fora isso parecia do nosso mundo. Eu, pessoalmente, acho que a criação da Ciência Hoje das Crianças foi o momento mais importante da história da Ciência Hoje, depois da fundação da CH. Mas muitas pessoas sérias voltadas à divulgação acharam a ideia absurda. Fato é que a CHC ampliou muito o alcance das nossas publicações, nos deu material para ser usado diretamente no ensino e, acima de tudo, estimulou desde cedo o interesse por ciências em crianças em todo o Brasil.

EC: Hoje de manhã, nesta mesma sala que estou no MUSA (Museu da Amazônia, em Manaus), uma arqueóloga, colaboradora de bastante tempo, me confessou que cresceu lendo Ciência Hoje das Crianças. Ela ficou eufórica quando eu disse que tinha participado da criação da revista. É muito bonito saber que isso tem acontecido de fato, com testemunhos de pessoas que foram influenciadas. Isso funcionou. Para além disso, a Ciência Hoje das Crianças se tornou mensal em um momento em que a Ciência Hoje estava para falir. Ela foi uma invenção para criar um produto que o Ministério da Educação poderia comprar em número muito grande e, de fato, comprava um milhão de cópias para todas as escolas por ano. Com isso, tivemos um superávit suficiente para salvar o projeto Ciência Hoje e transitar por aquela época muito difícil da política financeira do país, num cenário de hiperinflação.

CH: O Brasil ainda enfrenta muitos desafios na educação. Como veem as revistas nesse contexto?

EC: Concordo plenamente. Eu lembraria aqui que vivemos uma transição entre um sistema tradicional de educação e um novo sistema que ainda não surgiu com clareza, mas mudou completamente a forma como se realiza a divulgação científica e as relações entre o que se descreve e a realidade. A mediação virtual é uma glória e uma tragédia. Não sabemos ainda muito bem como lidar com isso. Vamos ver se nos próximos anos a gente consegue se renovar e acompanhar os tempos.

RL: As duas revistas – Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças – no âmbito global da educação são apenas instrumentos. É preciso fazer uma série de coisas na educação que não passam pelas revistas. Elas são instrumentos que vão contribuir com o que se precisa fazer na educação. E, para isso acontecer, você precisa ter uma sintonia entre a edição das duas revistas e os gestores de educação. A gente se aproximou disso quando vendia (a Ciência Hoje das Crianças) para o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), mas não me lembro de ter havido nenhum diálogo propriamente de conteúdo entre as partes. Seria muito interessante que essa política fosse englobada por uma discussão crítica, que os educadores se comunicassem com a gente. A inserção de um projeto de divulgação científica na educação depende de haver uma interação ativa entre os gestores, propositores de políticas públicas, com a produção das revistas, que são instrumentos, uma parte do processo, mas não todo.

RL: Eu diria que o projeto Ciência Hoje tem que multiplicar suas formas de atuação. Devemos ter uma agressividade, uma ousadia maior no uso de mediadores digitais, de momentos e de ferramentas digitais para divulgar a ciência. Queiramos ou não, as crianças a partir de seis anos de idade estão usando celular, mesmo que seja o dos pais.

CH: O que a Ciência Hoje representa ou representou para vocês?

RL: Eu me realizei muito com a Ciência Hoje. E me diverti. Eu diria que foi uma grande diversão, e, quando a gente se diverte se sentindo útil, é a melhor coisa do mundo. Acho que contribui para juntar pessoas, juntar colegas, o projeto é bonito – haja dopamina! – e é reconhecido. Acho que tivemos um papel histórico, não só pela implantação de um projeto de divulgação científica, mas de contribuição com a redemocratização do Brasil depois de uma ditadura de quase 20 anos. Também contribuímos para colocar a ciência como uma alternativa estratégica para o desenvolvimento do país, e isso é muito bom individualmente.

APG: É um grande prazer, uma grande realização e um grande orgulho. É isso

EC: Eu dividiria em três partes a resposta. Primeiro, é simpático ouvir de pessoas que se formaram lendo a Ciência Hoje e a Ciência Hoje das Crianças, confirmando que estávamos plantando sementes em terra fértil e que foi oportuno. Segundo, participar de um momento importante na vida política do país, particularmente o período pré-Constituinte. Foi muito curiosa a impressão que eu tive depois de ler os textos que, na época, nós não associávamos direito à Constituinte. Mas lendo, vejo que criamos um caldo em que todas essas questões foram tratadas e, muitas vezes, transcritas para a Constituição. E terceiro, é uma questão talvez mais pessoal: se tivesse que repetir a experiência, em vez de usar a terceira marcha e chegar a 60 quilômetros por hora, eu usaria a segunda marcha e ficaria a 20 quilômetros por hora. Os sacrifícios pessoais e familiares foram vorazes, vendo de longe, após 40 anos.

RL: Mas aí a Ciência Hoje não existiria porque foi graças a esse seu acelerador que a coisa toda aconteceu. Essa coisa de, para vencer a crise, fazer um projeto maior ainda.

CH: Foram mencionadas algumas crises pelas quais o projeto passou. Alberto esteve à frente do ICH durante sua mais grave crise financeira, houve medo de que CH e CHC acabassem? E o que significa ver o projeto vivo?

APG: Hoje fui escrever aqui anotações sobre essa pergunta a respeito da crise que nós passamos e me deu uma emoção muito forte. Eu mal consigo falar agora, me vêm lágrimas nos olhos. Foi muito forte. Foi a fase mais dolorosa que vivi em Ciência Hoje. Dolorosa para mim e para toda a equipe. A crise surgiu quando o MEC parou de comprar as revistas que eram vendidas para distribuição em todas as escolas; dentro desse programa chegamos a vender 35 milhões de Ciência Hoje das Crianças. Tivemos que interromper a produção das revistas impressas, e chegamos a demitir 2/3 do nosso pessoal; a dívida do instituto chegou a alguns milhões. Conseguimos sair do buraco devido à dedicação dos/as funcionários/as que se organizaram para terceirizar o trabalho. E foi fundamental a iniciativa da CAPES de incluir nossas publicações no Portal de Periódicos; a criação do Projeto Ciência Hoje digital, para o Município de Osasco, a partir de 2017, permitiu finalmente pagarmos as dívidas e retornarmos gradualmente à vida normal.

Foi muito forte. Foi a fase mais dolorosa que vivi em Ciência Hoje. Dolorosa para mim e para toda a equipe. Tivemos que interromper a produção das revistas impressas, e chegamos a demitir 2/3 do nosso pessoal_ALBERTO PASSOS GUIMARÃES

EC: Isso transcende a emoção justa de Alberto, mas eu posso acrescentar que nunca foi diferente. A quantidade de vezes em que estávamos para fechar foi muito grande. Infelizmente, não vivemos em um ambiente em que se cumprem os acordos, em que se valoriza algo extraordinário como aquilo que está sendo feito na Ciência Hoje ou em outros projetos.

RL: Ainda bem que tínhamos 30 anos quando começamos…

CH: Não podemos deixar de falar de Darcy Fontoura, que também figura como um dos fundadores da Ciência Hoje

RL: Foi constante no projeto todo como um protagonista ativo desde o início. Além disso, ele tinha um conjunto de amizades entre artistas plásticos muito grande, e nós conseguimos, por exemplo, que o Carlos Scliar (1920-2001), um artista de primeira linha,  ilustrasse alguns números da revista de graça.

EC: Ele era a ponte entre a geração que nos precedeu, apesar de não ser tão mais velho do que nós. Mas ele tinha o contato com uma geração um pouco mais velha, e ele foi muito importante para nos dar cobertura junto a esses interlocutores.

RL: Faltou a gente fazer a pergunta do que o Alberto significou para a Ciência Hoje. Nesses últimos anos, foi a sobrevivência, o renascimento, a perseverança.

“A Terra é um organismo vivo”. Essa foi uma das contribuições teóricas e filosóficas do geólogo escocês James Hutton (1726-1797) sobre a dinâmica geológica do planeta. Seu foco estava nos processos, fluxos e na transformação da matéria que modela a superfície terrestre ao longo do tempo geológico – processos e fluxos que permanecem ativos desde a formação do planeta até hoje.

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