Neil deGrasse Tyson está entre os cientistas de maior reconhecimento no cenário internacional contemporâneo em seu campo de pesquisa. Doutor em astrofísica pela Universidade de Columbia (EUA), o estadunidense Tyson é autor de um grande número de artigos científicos e de mais de uma dezena de livros. Já ocupou diversos cargos em associações científicas e comissões governamentais, e é atualmente diretor do Planetário Hayden do Museu Americano de História Natural, em Nova York. Para além de sua carreira como cientista, Tyson é reconhecido por suas ações em divulgação da ciência, colecionando diversos prêmios e honrarias. Sua imagem é popular nas redes sociais, em canais da internet e de televisão – é ele o apresentador de duas temporadas recentes da série Cosmos (2014 e 2020), reedições do clássico da década de 1980, apresentado pelo também astrofísico e estadunidense Carl Sagan (1934-1996).
Em 2009, durante um painel público sobre educação científica, no qual Neil deGrasse Tyson era um dos palestrantes convidados, alguém na plateia levantou a questão: “A presença de menos mulheres do que homens nas ciências exatas poderia ser explicada por diferenças genéticas entre os sexos?”. Em sua resposta, Tyson relatou como o fato de ser negro constituiu um obstáculo efeito para sua carreira como cientista (livre tradução):
Eu nunca fui mulher. Mas tenho sido negro por toda a minha vida. (…) Há muitas questões sociais similares relacionadas com acesso a oportunidades iguais (…) em uma sociedade dominada por homens brancos. (…) Quando olho para a minha vida, percebo que queria fazer astrofísica desde que eu tinha nove anos de idade. (…) Tive que ver como o mundo ao meu redor reagia à minha expressão dessas ambições. Tudo que posso dizer é que o fato de que eu queria ser um cientista e um astrofísico era, sem dúvida, o caminho de maior resistência através (…) das forças da sociedade. (…) Eu queria me tornar algo que estava fora do paradigma das expectativas das pessoas que estavam no poder. (…)
A narrativa de Tyson não é um caso isolado, que possa ser atribuído unicamente a condições particulares de sua trajetória pessoal. Trata-se da expressão de um problema conjuntural profundamente arraigado: o racismo estrutural, que produz significativas desigualdades educacionais.
O termo ‘racismo estrutural’ não indica a qualificação de um tipo de racismo – como se houvesse uma forma de racismo estrutural e outra não. É, essencialmente, uma ênfase que assinala a impossibilidade de se entender esse terrível fenômeno de uma perspectiva restrita a posturas e crenças de indivíduos específicos com motivações pessoais. O racismo emerge de hierarquizações sociais, baseadas no estabelecimento de categorias de ‘raça’, que são historicamente constituídas e, consequentemente, moldam a própria estrutura de uma sociedade, permeando a cultura, as instituições, as práticas, as relações interpessoais e coletivas em seus diversos setores e atividades. A ciência e seu ensino, como práticas sociais, não estão fora das ramificações do racismo estrutural. Por exemplo, o termo racismo científico se refere às tentativas de explicar ou justificar discriminações e desigualdades sociais por meio de um pretenso conceito biológico de raça, com base no qual certos grupos estariam mais propensos a determinados comportamentos e apresentariam maiores ou menores capacidades físicas e cognitivas.
Pesquisas brasileiras e internacionais no campo da educação nas últimas décadas mostram como processos de discriminação associados a raça, gênero, identidade de gênero e orientação sexual têm constituído obstáculos para a aprendizagem e para a progressão educacional, em especial nas disciplinas ditas ‘exatas’ ou ‘duras’, como matemática, física e química. Para citar um exemplo de pesquisa nacional, a tese de doutorado Identidades racializadas e a atitude de negras(os) frente à física, de Rodrigo Morais, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática da UFRJ, verificou que estudantes negras e negros de uma escola pública situada em uma comunidade carente da cidade do Rio de Janeiro, quando solicitados a identificar os cientistas dentre um conjunto de fotos apresentadas, indicavam apenas homens brancos. Para esses estudantes, o racismo estrutural sedimenta uma visão das ciências exatas como áreas restritas a pessoas brancas – o que constitui um impedimento para a aprendizagem dessas disciplinas e para o reconhecimento de carreiras nessas áreas como possibilidades atingíveis para si próprios. No cenário internacional, o Educational studies in mathematics, um dos periódicos científicos mais importantes do mundo na área de educação matemática, anunciou uma chamada de artigos para uma edição especial com o tema Raça, racismo e racialização em educação matemática.
No Brasil, as políticas públicas de ações afirmativas tiveram um papel fundamental na redução das desigualdades de acesso à educação superior. No caso das universidades públicas, a proporção de pessoas não brancas (pretas, pardas e indígenas) matriculadas têm se aproximado progressivamente da proporção desse grupo na população brasileira, que é estimada em torno de 57%, segundo dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, enquanto cerca de 30% dos jovens brancos de 18 a 24 anos estão matriculados na educação superior, essa proporção cai para cerca de 15% no caso de jovens pretos e pardos. Além disso, nas carreiras acadêmicas em ciências exatas, o número de pessoas negras e indígenas em posições de destaque ainda é muito menor que o de brancos. Da mesma forma, o número de mulheres ainda é muito inferior ao de homens nessas posições.
As tentativas de explicar desigualdades educacionais associadas a raça ou gênero por meio de diferenças genéticas ou quaisquer outros fatores biológicos inatos foram abandonadas pela pesquisa acadêmica séria desde os movimentos pseudocientíficos eugenistas, que tragicamente estiveram presentes no Brasil até a primeira metade do século 20. Por exemplo, no livro O cérebro com gênero: a nova neurociência que destrói o mito do cérebro feminino (em livre tradução), a neurocientista Gina Rippon desmistifica crenças disseminadas de que mulheres e homens possuem habilidades, gostos e preferências congenitamente determinadas pelo gênero. Com base em evidências de neurociência de ponta, a autora desconstrói essa visão binária, e argumenta que, ao contrário, é o bombardeamento constante por esses estereótipos de gênero que acaba por moldar nossos cérebros.
Entretanto, o fato de que questões de raça ou de gênero possam ser objetos de pesquisas acadêmicas em ensino de matemática e de ciências exatas ainda provoca reações de surpresa (ou mesmo de estranhamento) em muita gente, inclusive no próprio meio acadêmico – apesar das consideráveis evidências que mostram a gravidade dessas questões e a necessidade enfrentá-las. Tais reações parecem estar relacionadas com certa ‘confusão epistemológica’. Embora as ciências exatas sejam hoje reconhecidas como áreas da lógica e da certeza, seus processos de produção e de validação são conduzidos por humanos, assim como ocorre em quaisquer outros campos de conhecimentos. Isto é: tal imagem de ‘lógica’ e de ‘certeza’ pode descrever a maneira como os resultados estão organizados hoje nessas áreas, mas certamente não as formas por meio das quais seus conhecimentos são desenvolvidos – e muito menos como são aprendidos. Portanto, não há qualquer razão para esperar que o desenvolvimento e a educação de matemática e de ciências exatas em geral possam estar alheios ou isentos das questões sociais que atravessam outras atividades humanas contemporâneas, incluindo o racismo, o machismo e outros modos estruturais de discriminação. Para citar mais um caso, bastante familiar, basta lembrar que o físico Albert Einstein e vários outros cientistas foram impedidos de trabalhar, perseguidos e expulsos da Alemanha nazista pelo simples fato de serem judeus.
No livro Algoritmos de Destruição em Massa, a matemática Cathy O’Neil argumenta como modelos matemáticos que alimentam a economia – e são comumente vistos como frios e impessoais – incorporam em suas estruturas enviesamentos e preconceitos (inclusive de fundo racial) presentes nos meios sociais daqueles que os desenvolvem. Os vereditos produzidos por esses modelos, vistos como inquestionáveis, acabam por proteger aqueles já são privilegiados e a punir mais ainda os excluídos, aprofundando desigualdades sociais e constituindo, nas palavras da autora, um “coquetel tóxico para a democracia”.
Reações de surpresa provocadas pela existência de pesquisas em ensino de matemática e de ciências exatas envolvendo questões de raça ou de gênero também podem estar associadas a certas concepções tácitas sobre o que é ensinar. Parece haver uma visão, razoavelmente disseminada, de que o ensino de disciplinas de matemática e de ciências exatas é tão mais ‘eficiente’ quanto mais se reduzir a apresentações lógicas e descritivas dos conteúdos. Essa visão se sustenta, mesmo inadvertidamente, em concepções sobre a própria aprendizagem: uma ideia de que a exposição dos estudantes a tais apresentações lógicas e descritivas fosse suficiente para garantir que eles aprendam – como se não houvesse influência por aspectos subjetivos, afetivos, envolvendo identificação e pertencimento. Ignora-se a aprendizagem como um fenômeno cognitivo e social complexo. Mais do que isso, parece haver uma concepção de que a consideração de questões sociais e subjetivas no ensino implicaria necessariamente em enfraquecimento ou superficialização dos conteúdos – uma falsa dicotomia que pode prejudicar seriamente práticas e políticas em educação de matemática e de ciências exatas. Essas concepções desqualificam a educação como área de pesquisa e a docência como profissão.
Uma agenda de pesquisa em ensino de matemática e de ciências exatas, que seja rigorosa e responsável, não pode descartar, a priori, qualquer aspecto que possa interferir na aprendizagem – o que vai muito além de pensar nas ‘formas mais eficientes de ensinar o conteúdo’, com um olhar que se volta apenas para o conteúdo e que negligencia quem são os sujeitos que aprendem e o que os afeta. Dizer que não é preciso se preocupar com questões sociais em ensino de matemática e de ciências exatas e que basta pensar na ‘melhor forma de ensinar o conteúdo’ é se recusar a olhar para algumas das verdadeiras causas de obstáculos de aprendizagem – é como dizer que a pesquisa médica não precisa se preocupar com tratamentos para as doenças, e que basta distribuir analgésicos para seus sintomas.
Em particular, há uma justificada preocupação nos meios acadêmicos e educacionais com o crescimento das crenças negacionistas – como Terra plana e movimento antivacina. Porém, o caminho de combater o negacionismo com a educação não é buscar um ensino de matemática e de ciências exatas cada vez mais duro e rigoroso, e sim uma educação que faça sentido para as pessoas – que as aproxime da ciência, em lugar de convencê-las de que a ciência é um território restrito em que sua entrada é proibida.
Para finalizar, voltemos a outro trecho do relato de Neil deGrasse Tyson, em 2009 (livre tradução):
(…) Agora aqui estou, acredito, um dos cientistas com mais visibilidade nesta terra. E olho para trás e penso: Onde estão os outros que poderiam ter sido isso? E eles não estão aqui. (…) Simplesmente por causa das forças da sociedade tentam impedir em todos os passos, em todos os passos, ao ponto que tenho seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamentos, presumindo que sou um ladrão. (…) Então, minha experiência de vida me diz que quando não encontramos negros nas ciências, quando não encontramos mulheres nas ciências, eu sei que essas forças são reais, e eu tive que sobreviver a elas para estar onde eu estou hoje. Então, antes de começar a falar de diferenças genéticas, vocês têm de apresentar um sistema em que há oportunidades iguais. Então nós podemos ter essa conversa.
O ponto a destacar aqui não é como Tyson conseguiu atingir o topo carreira ‘apesar’ dos obstáculos impostos pelo racismo estrutural nos meios educacionais e acadêmicos, mas como inúmeras outras pessoas, que poderiam trazer contribuições importantes para a ciência, deixam de seguir suas carreiras ‘por causa’ desses obstáculos. Em outras palavras, o fato de haver pessoas que individualmente superam total ou parcialmente tais obstáculos não é argumento para negar os prejuízos que o racismo e o machismo impõem às pessoas e à sociedade.
Considerando-se que mais da metade da população brasileira é de pessoas não brancas (negras e indígenas), políticas públicas com foco no combate ao racismo e ao machismo estruturais como impedimentos à aprendizagem e à progressão escolar não se justificam apenas como ações de justiça social, constituem, sobretudo, uma questão estratégica para o desenvolvimento do país. Em particular, é urgente que essas políticas incluam projetos de formação de professores nas áreas de matemática e de ciências exatas que sejam orientados por considerações sobre ‘de quem e para quem’ é a educação.
Victor Giraldo
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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