Como fica a vacinação das crianças contra a covid-19?

Essa questão envolve, pelo menos, dois aspectos. O primeiro deles é se crianças podem ser vacinadas. Pensando de maneira geral, as vacinas são fundamentais no combate da mortalidade infantil, contribuindo diretamente para o aumento da expectativa de vida. Por essa razão são majoritariamente aplicadas na infância.

Um segundo aspecto seria se é necessário vacinar as crianças. É fato que, diante da escassez de vacinas no momento, o Brasil precisa seguir com a ordem de prioridades. As crianças, consideradas um dos grupos menos suscetíveis, estão no fim da fila. Entretanto, centenas de crianças morreram em decorrência da covid-19 no país. Por isso, a vacinação para este grupo será necessária tanto no combate à mortalidade como para controle da pandemia – não se pode ignorar que o retorno escolar promoverá uma maior circulação de vírus nesta faixa etária.

Diante desse cenário, após a vacinação em massa da população, a vacinação de crianças contra covid-19 deverá ser mandatória, até porque a perspectiva é de que esse vírus ficará circulando por muitos anos ou possivelmente para sempre, sendo o combate da covid-19 um esforço continuado.

Para encerrar com uma boa notícia, estudos para avaliar segurança, dose e eficácia da vacina em crianças estão em andamento. Cientistas de diferentes países, e eu me incluo entre eles, são otimistas de que os diferentes imunizantes funcionarão em crianças e será uma grande esperança para o controle da covid-19.

 

Herbert Guedes
Instituto de Microbiologia Paulo de Góes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

O evento surrealista do ‘rabo de porco’, que aparece em alguns personagens do livro Cem anos de solidão, teria algum embasamento científico?

Podemos supor que o ‘rabo de porco’ corresponderia a um evento que a genética denomina ‘autossômico recessivo’. Mas para estabelecer essa relação precisamos de uma breve visita à obra.  Resumidamente, a saga Cem Anos de Solidão, do jornalista e escritor colombiano Gabriel Garcia Marquéz (1927-2014), se inicia com a fundação do vilarejo Macondo pelo casal Úrsula e José Arcadio Buendía. Durante os primeiros anos do casamento, Úrsula evita o marido, que é seu primo, temendo gerar um descendente com rabo de porco, pois tal característica física aparecera na família, devido à relação consanguínea da geração anterior. No entanto, Úrsula concebeu, com um suspiro de alívio, três crianças sem rabo de porco. A história se desenrola através das aventuras surreais dos descendentes das sete gerações da família Buendía. Úrsula é a personagem centenária que acompa­nha as gerações de seus herdeiros. Corre o tempo e a famí­lia Buendía é extinta quase ao mesmo tempo em que o vilarejo Macondo, com o nascimento de um bebê com rabo de porco, fruto de outra relação consanguínea: entre tia e sobrinho.

A característica/moléstia ‘rabo de porco’ exemplifica doenças que são condicionadas por mutação na sequência de DNA em um único gene, seguindo assim os princípios da herança mendeliana. O rabo de porco seria um distúrbio genético do tipo autossômico (não associado a cromossomos sexuais), o qual atinge ambos os gêneros na mesma proporção. E ainda, de acordo com o heredograma da família Buendía, verifica-se que a característica rabo de porco é condicionada por um alelo recessivo. Doenças genéticas são classificadas como recessivas quando o indivíduo herda, de cada um dos pais, o alelo defeituoso, aparecendo então em homozigoze (exemplo de representação dos alelos: pp, como inicial da palavra “porco”). Já os indivíduos “normais” podem apresentar dois genótipos: o que possui dois alelos não mutantes (homozigoto dominante – PP) e os que apresentam um alelo não mutante e um alelo mutante (heterozigoto – Pp). O fenótipo dos indivíduos afetados em distúrbios autossômicos recessivos geralmente se manifesta em saltos de gerações, ou seja, se na primeira geração a doença se manifesta, na geração seguinte não há manisfestação da doença, para voltar a reaparecer a partir da terceira geração. No heredograma de Cem anos de Solidão, por exemplo, há o acometimento da moléstia nas gerações I e VII da família Buendía. É comum pais consanguíneos não afetados, como Ama­ranta Úrsula e Aureliano Babilônia (sobrinho de Amaran­ta) terem um filho afetado, como o último bebê desta saga.

A herança genética mendeliana surreal, descrita em Cem Anos de Solidão, pode ser exemplificada por uma situação real, através da doença humana fenilcetonúria (PKU – phenyl-keton-uria), a qual é um distúrbio genético associado a erros inatos do metabolismo. O distúrbio é causado por um alelo mutante para o gene da enzima hepática fenilalaninahidroxilase (PAH), localizado no cromossomo 24. A enzima PAH converte o aminoácido fenilalanina em tirosina. Indivíduos acometidos por esta síndrome autossômica recessiva possuem dois alelos mutantes (como observado para a característica rabo de porco em Cem Anos de Solidão), os quais expressam a enzima PAH modificada, incapaz de realizar a sua função, resultando em acúmulo de fenilalanina no organismo. Desta forma, é ativada uma via metabólica secundária, que converte a fenilalanina em ácido pirúvico, substância produzida normalmente no ciclo respiratório de Krebs. No entanto, quando produzido em excesso, o ácido pirúvico é extremamente prejudicial ao sistema nervoso, podendo acarretar retardo mental. Atualmente, a PKU é facilmente identificada pelo teste do pezinho após o nascimento e com uma dieta especial os sintomas da doença podem não ser desenvolvidos.

Sendo a fenilcetonúria uma doença genética do tipo recessiva, assim como a característica/moléstia “rabo de porco”, há maior probabilidade de descendentes de casamentos consanguíneos serem acometidos pela doença.

 

Andréa Góes
Instituto de Biologia Roberto Alcântara Gomes
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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