O funcionamento do fígado ao longo da vida é moldado, entre outros fatores,pelas transições alimentares que acontecem com o indivíduo desde a gestação, como os processos de amamentação e desmame. Recentemente, pesquisas mostraram que o desmame precoce de camundongos prejudica o amadurecimento das funções imunológica e metabólica do fígado desses animais, o que pode torná-los mais suscetíveis a doenças medicamentosas no futuro. A descoberta reafirma a importância do leite materno para a saúde do indivíduo por toda a sua vida.
O funcionamento do fígado fascina a humanidade há muitos e muitos anos. O órgão é personagem até da mitologia grega, no mito de Prometeu: ao roubar o fogo do Olimpo, símbolo do conhecimento e da inteligência, para dar aos homens, Prometeu é castigado por Zeus, que o acorrenta no alto do monte Cáucaso, por 30 mil anos, durante os quais seu fígado é bicado diariamente por uma águia, se regenera no dia seguinte e sofre novo ataque do pássaro. Um martírio mesmo para um titã imortal! Mas o que é surpreendente mesmo é perceber que, na Grécia Antiga, já se conhecia um pouco sobre o funcionamento do fígado e sua enorme capacidade regenerativa. No entanto, essa habilidade de recuperação não é eterna como na mitologia; ela depende de outros fatores, como a amamentação.
Antes de ir adiante, é preciso falar mais sobre o funcionamento do fígado, que é o segundo maior órgão do corpo humano (perdendo só para a pele). Localizado na cavidade abdominal, seu posicionamento é extremamente estratégico no corpo: está exatamente entre o intestino e o coração. Quer dizer que tudo o que comemos e bebemos obrigatoriamente tem que ser inspecionado pelo fígado antes de chegar aos diversos órgãos do nosso corpo. Essa posição estratégica permite ao fígado desempenhar diversas funções metabólicas e imunológicas indispensáveis ao organismo, como controle do metabolismo, regulando a disponibilidade de glicose e lipídios, produção de bile, ureia e fatores de coagulação, além de eliminar substâncias tóxicas.
Por outro lado, essa localização tão conveniente deixa o fígado continuamente exposto a ataques – na medicina chamados de ‘insultos’. Essas agressões – que podemos comparar a uma ‘insalubridade do trabalho’– podem ser de ordem nutricional, já que dietas desbalanceadas e diversos produtos da digestão dos alimentos vão direto para o fígado.
Esse ‘corajoso’ órgão ainda enfrenta outros desafios. Como se sabe, a maior quantidade de microrganismos de nosso corpo está no trato gastrointestinal. É o que chamamos de ‘microbiota intestinal’, que, quando desregulada, pode ser a causa de diversas doenças, embora seus microrganismos sejam essenciais para a nossa saúde. No entanto, é possível que pequenos fragmentos da microbiota ou até mesmo microrganismos intactos escapem do intestino e cheguem até o fígado. E é então que outra função se destaca: o fígado funciona como um filtro do sangue que vem do sistema digestório, eliminando produtos e microrganismos infecciosos provenientes da microbiota intestinal.
Tal filtro não funciona somente para microrganismos, mas também para substâncias tóxicas que ingerimos, como medicamentos, drogas e álcool. Para exercer todas essas diferentes funções, o fígado conta com uma grande e diversa população celular, que garante a vigilância constante dessas substâncias e moléculas que podem ser nutricionais, patogênicas ou simplesmente inofensivas. Todas essas características e o crescente interesse sobre a biologia hepática conferiram ao fígado o status de um dos órgãos mais complexos e interessantes do corpo.
O fígado parece ser, na verdade, a convivência de dois diferentes órgãos, dentro de um só, se dividindo em funções imunológicas e metabólicas, que trabalham em conjunto. Isso só é possível devido ao design arquitetônico espetacular e único, somado à diversidade de populações celulares que formam esse órgão. Quase 80% dele é formado por hepatócitos. Os hepatócitos são células bem delimitadas e organizadas, responsáveis pelas funções metabólicas do fígado. Por exemplo, cerca de 95% de todas as proteínas e enzimas do órgão são sintetizadas pelo hepatócito. Basicamente, todos os produtos da dieta, quando chegam ao fígado, são endereçados a essas células. E, a partir delas, processamos tudo o que ingerimos para que seja aproveitado pelo organismo.
Nesse mesmo ambiente hepático, encontramos também as células responsáveis pelas funções imunológicas do fígado. Essas células constituem o sistema imunológico hepático, formado especialmente pelas células de Kupffer, células dendríticas e linfócitos. As células de Kupffer são os macrófagos residentes hepáticos, e estão localizadas dentro dos capilares sanguíneos. Essa localização deixa as células de Kupffer diretamente em contato com o fluxo sanguíneo, permitindo a limpeza e apreensão (por fagocitose) de conteúdos nocivos presentes na microcirculação hepática. As células de Kupffer atuam então como sentinelas imunes hepáticas, impedindo que antígenos do intestino e toxinas bacterianas, como grandes quantidades de lipopolissacarídeos (LPS), atinjam a circulação sistêmica, evitando a disseminação de patógenos em condições tanto de saúde quanto de doença. Na idade adulta, as células de Kupffer têm uma grande capacidade de remover as bactérias livres do sangue, o que é essencial em situações em que a barreira intestinal é prejudicada.
Essa eficiência das células de Kupffer, no entanto, não é observada nas fases iniciais da vida, como, por exemplo, em recém-nascidos. Nosso grupo descobriu recentemente essa característica ao observar que as células de Kupffer de animais recém-nascidos têm menor capacidade de remover alguns tipos de bactérias da circulação, o que pode explicar a maior susceptibilidade de neonatos a infecções(figura 1).
E é aí que voltamos ao mito de Prometeu. Essa narrativa grega alimenta a noção – comum ainda hoje – de que o fígado já nasce funcionalmente maduro, com as populações celulares definitivas, com capacidade regenerativa infinita. Ou seja, contribui para a ideia de que, a cada ataque, o órgão ‘retorna’ ao que sempre foi. Mas não é bem assim… O fígado não apresenta um programa de maturação e desenvolvimento já pré-estabelecido. Não há um ‘plano A’ somente. Ter capacidade de adaptação às mudanças e aos diferentes ambientes parece ser fundamental para a sobrevivência. E, de fato, desde a concepção, passando pelo nascimento, até a vida adulta, o indivíduo vivencia diversas transições – especialmente alimentares – que irão moldar o fígado de forma a atender a essas necessidades.
No período gestacional, quando o embrião ainda é nutrido pelo cordão umbilical, o fígado funciona como um berço para as células imunológicas que vão fazer parte do sistema imune durante toda a vida do indivíduo. Porém, ao nascer, o fígado ainda é um órgão imaturo e, por isso, interferências ao longo do período neonatal podem ter consequências no desenvolvimento metabólico e imunológico do órgão durante toda a vida adulta.
Durante o período fetal, a nutrição depende exclusivamente dos nutrientes que atravessam a placenta: a glicose chega em altas quantidades, sendo a principal fonte de energia fetal, seguida dos aminoácidos, enquanto ácidos graxos livres, colesterol e triglicerídeos passam em apenas pequenas quantidades. Com o nascimento, o organismo passa por uma grande transição alimentar: agora a principal fonte de energia será o leite materno, rico em lipídeos, diferentemente do período fetal. Essas alterações fazem com que o fígado precise passar por uma série de adaptações para garantir a sobrevivência do indivíduo fora do ambiente uterino.
Tais adaptações envolvem todas as células que formam o fígado – não somente os hepatócitos, mas também as células responsáveis pelas funções imunes. O órgão dos recém-nascidos não é como o dos adultos: é formado – em termos imunológicos – principalmente por células mieloides, como as da medula óssea, e células B. Além disso, os recém-nascidos apresentam reduzida capacidade de metabolizar macronutrientes (especialmente carboidratos e lipídios) em comparação a um adulto, mas essa capacidade vai se aproximando do nível encontrado em um adulto em torno do período de desmame – a segunda transição alimentar.
Até aqui, seria fácil acreditar em um programa pré-estabelecido de desenvolvimento hepático, pois temos três fases da vida (fetal, neonatal e adulta), em que observamos duas transições entre etapas nutricionais (da placenta para a amamentação, e daí para uma alimentação convencional, pós-desmame).
Curiosamente, ao se desmamar precocemente um camundongo, ou seja, ao anteciparmos uma etapa, observamos uma profunda perturbação da expressão de várias vias metabólicas hepáticas, fornecendo uma nova visão sobre como o esquema alimentar afeta de fato a maturação metabólica do fígado(figura 2). Esses dados reforçam que um dos principais fatores que levam ao desenvolvimento adequado do fígado enquanto órgão imune e metabólico é uma dieta correta. E, em se tratando de neonatos, essa alimentação é justamente o aleitamento materno.
Diante disso, uma realidade assustadora pode explicar tantos problemas nutricionais em adultos: apenas 39% dos bebês brasileiros de até 5 meses são alimentados só com leite materno, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse problema não é privilégio nacional: apenas 23 países no mundo – dos 194 avaliados – superam a taxa de 60% de amamentação exclusiva nos primeiros meses. Esses dados alarmantes sustentam a necessidade de buscarmos não somente a conscientização da população acerca da importância do aleitamento materno, mas também de criarmos alternativas eficazes de alimentarmos recém-nascidos que não mamam no peito com o menor impacto possível.
A recomendação mais recente da OMS é que bebês devem ser alimentados exclusivamente com leite materno até os 6 meses de idade. Porém, esse período pode ser variável por diversas razões, incluindo o tempo gestacional. Nossas pesquisas mais recentes apontam para diversas perguntas: será que bebês nascidos de parto prematuro, ou que ficaram um tempo menor em gestação (ainda que não considerados prematuros), precisam de um tempo maior de amamentação para desenvolverem o sistema imunológico e metabólico corretamente? Será que existe um período fixo de amamentação que seja suficiente para todos os bebês? Será que vale a pena exigir que uma mãe retorne ao trabalho ao fim do seu período de licença-maternidade se ainda pode haver a necessidade de ter aleitamento materno por um tempo maior? Seria possível criarmos um teste para predizer quando o neném já está maduro para desmamar? Será que esse teste poderia ajudar as mães a ficarem um tempo maior de licença? Será que um dia as pesquisas sobre o sistema imunológico podem ajudar a sociedade a ser mais humana com mulheres e crianças?
Maísa Mota Antunes e Gustavo Batista Menezes
Centro de Biologia Gastrointestinal, Instituto de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Minas Gerais
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