A ciência que aproxima China e Brasil

Não é fácil surpreender um cientista com a experiência de Carlos Medicis Morel, coordenador-geral do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ex-presidente da instituição e ex-diretor do TDR, Programa Especial de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas aconteceu em fevereiro de 2017, quando o pesquisador visitou, pela segunda vez, a China. A grande surpresa veio de uma cidade da qual ele sequer tinha ouvido falar antes, Shenzhen. “Lá visitei o hospital onde foi elucidada a estrutura do vírus Zika, o Beijing Genome Institute e o China National Gene Bank, onde vi, em uma sala, uma centena de sequenciadores trabalhando dia e noite. Foi quando a ficha caiu. Fiquei fascinado por aquele mundo que desconhecia”. Na volta ao Brasil, Morel estava determinado a convencer a presidência da Fiocruz da importância da parceria. E conseguiu. Em novembro de 2017, foi fechado um acordo entre a Fiocruz e o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) chinês e, meses depois, outro com quatro instituições chinesas. Hoje os laços entre o cientista, a Fiocruz, o Brasil e o país asiático ainda estão mais estreitos: ele é um dos coordenadores do Projeto Brasil-China, uma colaboração entre a Academia Brasileira de Ciências e sua equivalente chinesa. Nesta entrevista, Morel fala sobre essa colaboração, o combate a epidemias e o cenário da ciência brasileira.

Ciência Hoje: É fundamental a colaboração internacional na ciência?

Carlos Morel: Depende muito de que tipo de ciência. Se for astronomia, tem que ser internacional, você não pode ficar isolado. Mas se está pesquisando as filas do SUS (Sistema Único de Saúde), a questão é mais local. A pesquisa deve estar sincronizada com o problema que está sendo estudado. Mas, em 99% dos casos, a colaboração internacional é muito importante; sem isso, você corre o risco de redescobrir a pólvora ou reinventar a roda. Você tem que estar apoiado no que já foi feito. É como a frase atribuída a [Isaac] Newton: “Pude ver mais longe por estar apoiado em ombros de gigantes”.

 

CH: Quais benefícios as parcerias com a China podem trazer para a ciência brasileira?

CM: De resultados palpáveis, cito a realização de três seminários bilaterais, a instalação na Fiocruz de duas máquinas de sequenciamento cedidas por eles e a publicação de artigo sobre a estrutura do vírus Chikungunya na revista Cell, onde somos coautores, eu e Leonardo Vázquez, pós-doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do CDTS que ficou um ano na China. Mas novos caminhos estão no horizonte. Por exemplo, a Academia Brasileira de Ciências está montando um grande projeto Brasil-China com a academia de ciências de lá, focado em cinco áreas: biodiversidade e biotecnologia; ciências biológicas e biomédicas; ciências agrárias; ciências e tecnologias espaciais; ciências da terra e mudanças climáticas. Tive a honra de ser convidado a coordenar a área biológica e biomédica, e meu par na China é Georges Fu Gao, diretor do CDC de lá que me convidou a visitar Shenzhen em 2017. Propus trabalharmos em duas grandes áreas de interesse para os dois países: (i) pesquisa para a prevenção e controle de epidemias; (ii) doenças genéticas, terapia gênica e medicina personalizada, incluindo o câncer. Em ambas as áreas a China está muito avançada, o país se tornou uma liderança em avanços científicos.


A Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde, tem capacidade mundialmente reconhecida e poderá aproveitar essa parceria e avançar bastante. Podemos fazer acordos explorando a capacidade científica e financeira deles e a capacidade estratégica da Fiocruz

CH: Como você vê essa colaboração a médio e longo prazos?

CM: O Brasil não tem condições de andar na mesma velocidade da China. Eu vou lá em um ano e, quando volto no ano seguinte, encontro um prédio novo e já equipado. O CDTS, projeto estruturante da Fiocruz, está sendo construído há 12 anos, e ainda faltam três anos. Estou com 76 anos, espero que fique pronto antes dos meus 80… Sim, os chineses vão avançar mais rapidamente do que nós, é um fato. Mas a Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde, tem capacidade mundialmente reconhecida e poderá aproveitar essa parceria e avançar bastante. Podemos fazer acordos explorando a capacidade científica e financeira deles e a capacidade estratégica da Fiocruz. Quando nossos parceiros nos visitam, ficam impressionados. O diretor do hospital onde foi determinada a estrutura do vírus Zika ficou tão admirado com o fato de a Fiocruz não ser só um hospital, mas também ter áreas de pesquisa básica, ensino, controle de qualidade, que me confidenciou que está modificando seu plano diretor inspirado na Fiocruz. Em julho deste ano, a vice-prefeita de Shenzhen veio à Fiocruz e perguntei: qual o seu interesse aqui, já que vocês são mais avançados? Ela respondeu: “Podemos ser avançados tecnologicamente, mas em sistema de saúde, temos que aprender muito com vocês e com o SUS.” Tive de ouvir de um chinês uma obviedade que nossos políticos não entendem! Em 120 anos, a Fiocruz passou por muitas situações, boas e ruins, aprendeu muito. Não temos o poderio financeiro da China, mas temos recursos humanos de excelência e uma capacidade científica que não é desprezível.

 

CH: Durante a campanha presidencial, o presidente Jair Bolsonaro foi bastante crítico em relação à China. Isso afeta as parcerias?

CM: De início, ficamos preocupados porque ele veio com um discurso muito forte contra a China, que poderia significar cortes ou restrições. Mas isso mudou quando ele foi lá e viu, com os próprios olhos, a potência atual da China, hoje o maior parceiro comercial do Brasil. Sabemos que uma colaboração científica em áreas prioritárias para o país será bem-vinda e bem vista pelo ministro da Saúde [Luiz Henrique Mandetta], com quem a Fiocruz tem uma boa relação.


Na área de tecnologia e inovação, poucos países investem tanto quanto a China. O país não é (ainda) a primeira potência tecnológica do mundo, e eles sabem disso. Mas, enquanto várias potências estão estáveis ou declinantes, eles estão em ascensão

CH: É possível fazer um paralelo do investimento em ciência e tecnologia de Brasil e China? E dos resultados do investimento nessa área?

CM: Na área de tecnologia e inovação, poucos países investem tanto quanto a China. O país não é (ainda) a primeira potência tecnológica do mundo, e eles sabem disso. Mas, enquanto várias potências estão estáveis ou declinantes, eles estão em ascensão, tanto que é flagrante o medo dos Estados Unidos. Já o Brasil vem perdendo muitas oportunidades. Nossa ideia é aproveitar a parceria com a China para evoluir para uma posição mais avançada. Um exemplo claro: o Brasil não tem laboratórios de segurança máxima, chamados de P4, aqueles em que você trabalha de escafandro, como vemos nos filmes. Já temos acordo com o P4 da Universidade de Boston [EUA], que abriga o NEIDL [National Emerging Infectious Diseases Laboratories], mas o acesso a estruturas similares na China será muito importante para nossas pesquisas em prevenção de controle de epidemias e mapeamento do que chamamos de ‘Viroma Global’. Com essas parcerias, teremos acesso a instalações e cérebros que aqui fazem falta. Importante lembrar que hoje a China tem liderança em vários campos e patenteia mais do que Estados Unidos, Japão e Coreia juntos.

 

CH: Sua visita à China que impulsionou essa parceria foi motivada pela organização do Global Virome Project (Projeto Viroma Global). O que é isso?

CM: É uma iniciativa global de cooperação científica para detectar vírus desconhecidos que podem ameaçar a saúde em nosso planeta. O objetivo é reduzir o risco de futuros surtos virais. O projeto foi proposto em 2016, em Bellagio, na Itália, em um encontro financiado pela Universidade da Califórnia em Davis [EUA] e a Agência Internacional de Desenvolvimento dos Estados Unidos [USAID, na sigla em inglês]. Em 2017, nos encontramos novamente em Beijing para implementar o China Virome Project e, em 2018, publicamos um artigo na Science e estávamos muito otimistas. Mas, em seguida, a Nature publicou um artigo de opinião contrário ao projeto que representou um balde de água fria. Recentemente, foi publicado um texto na revista Lancet reafirmando enfaticamente a importância do projeto. O grande obstáculo para seguir adiante é que contávamos com um financiamento massivo do NIH [Instituto Nacional de Saúde dos EUA], mas [o presidente Donald] Trump, assim como Bolsonaro aqui, fez cortes substantivos nas áreas de ciência e tecnologia. O China Virome Project está em andamento, e esperamos que, com a parceria, possamos fazer o mesmo no Brasil. Mas o ideal seria um avanço conjunto, global, porque pode surgir um vírus de um lugar que não esteja mapeado.

 

CH: Quais são as epidemias e ameaças mais perigosas?

CM: As potencialmente mais perigosas são aquelas que ainda vão surgir e ainda não conhecemos. Mas não devemos minimizar as que conhecemos e podem reemergir, como uma gripe como a gripe espanhola de 1918, tão mortal que cadáveres insepultos se amontoavam pelas ruas do Rio de Janeiro. Quando eu trabalhava na OMS, em Genebra, o maior medo dos especialistas era o surgimento de um “ebola com asas”, uma figura de linguagem para os leigos entenderem. Como o vírus ebola é transmitido pelo contato direto com o sangue ou outros fluidos corporais, ele ainda está primordialmente restrito a localidades na África. Já vírus como os do sarampo e da gripe são transmitidos pelo ar e têm um potencial de disseminação muito mais explosivo. Uma mutação do atual vírus ebola, que o dotasse de ‘asas’, ou seja, capacidade de transmissão pelo ar, teria impacto mundial. Das epidemias que estão por aí, as febres hemorrágicas, como Lassa e Marburg, estão entre as mais perigosas. No Brasil, uma epidemia que conhecemos bem e que mata é a febre amarela, para a qual felizmente existe uma vacina que funciona quando administrada no momento certo. Mas não devemos nos esquecer das arboviroses que estão atualmente presentes, como dengue e Chikungunya, nem do que passamos em 2015-2017 com o vírus Zika, que no momento anda dormente, mas pode nos surpreender em novo surto.

 

CH: Pode falar um pouco sobre o seu trabalho com doenças de populações negligenciadas?

CM: Aí vamos entrar em outra área, a dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia [INCT]. Em 2009, quando ganhamos o nosso primeiro INCT, o nome era: inovação em doenças negligenciadas. Na proposta do segundo, em 2014, decidimos mudar para inovação em doenças das populações negligenciadas, para não ficarmos limitados às doenças listadas como negligenciadas pela OMS e/ou o Ministério da Saúde. Se fôssemos a uma localidade e não tivesse uma das doenças listadas, não teríamos nada que fazer lá. Foi uma mudança muito positiva para sincronizar a nossa atividade com a situação epidemiológica do Brasil.


[Os chineses] estão muito envolvidos com um conceito moderno de saúde que é o ecohealth, uma forma de pensar a saúde ecologicamente, incluindo meio ambiente, saúde animal etc.

CH: Essa visão de população negligenciada também está em pauta na parceria com a China?

CM: A China não é um país tão desenvolvido quanto Suíça, Dinamarca ou Estados Unidos, por exemplo. Eles conseguiram avanços fenomenais na área de saúde e reduziram a pobreza, mas ainda há uma grande população rural, pobre e carente, com problemas sérios, inclusive de saúde animal. Por isso, estão muito envolvidos com um conceito moderno de saúde que é o ecohealth, uma forma de pensar a saúde ecologicamente, incluindo meio ambiente, saúde animal etc.

 

CH: Essa visão mais ampla de saúde também está na mira do Brasil?

CM: O Brasil está em uma transição complicada, com um sistema de governo que limita o acesso à ciência e à tecnologia e não investe em recursos humanos de excelência. Está liberando agrotóxicos a torto e a direito. Na ciência, estamos vendo desafios que pensávamos que nunca mais retornariam. Ficamos tão satisfeitos com a criação dos INCTs, do Ciência sem Fronteiras! Pela primeira vez, tínhamos programas com orçamentos robustos; não era ainda a situação ideal, mas era um progresso significativo na direção correta. Agora a situação é muito crítica, com cortes de verbas, de programas, de bolsas e ameaças de desmontes. As instituições de ciência e tecnologia, como a Fiocruz, e as universidades têm responsabilidade de lutar contra isso e mostrar que não há futuro sem ciência, tecnologia, saúde e educação.

Valquíria Daher

Jornalista
Instituto Ciência Hoje

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