Língua Portuguesa e Matemática, juntas em sala

Experiência de aula compartilhada das duas disciplinas aponta para novas dinâmicas e alternativas de aprendizagem.

No complexo cenário político brasileiro, sobretudo no contexto da educação pública, este espaço não representa apenas a divulgação de mais uma entre infinitas possibilidades de ensino nas escolas. Torna-se simbólico que as palavras aqui escritas sejam pronunciadas por e para professores da educação básica, uma vez que estes, historicamente, foram – e ainda são – silenciados e desconsiderados pelas políticas públicas educacionais. Movidos pelo desejo de repensar práticas pedagógicas tradicionais neste lugar de resistência, apresentamos uma experiência de docência compartilhada, envolvendo as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática, realizada em turmas de 8º ano do Ensino Fundamental do Colégio Pedro II.

A fragmentação dos conteúdos escolares, o distanciamento entre disciplinas do currículo e a forma como as matérias se apresentam desconectadas da vida dos estudantes representam uma problemática recorrente para a prática docente. Essa realidade motivou a produção de uma aula que possibilitasse a interligação dessas duas disciplinas, contribuindo para a produção de subjetividades conscientes de si, do outro e do mundo.

Um tema, duas disciplinas

O primeiro desafio dessa proposta de trabalho interdisciplinar foi a escolha do tema, “Simetria e assimetria: ‘perfeição’ e resistência”. Em uma primeira impressão, é comum o conceito de simetria ser rotulado como uma noção estritamente matemática, atrelada, sobretudo, a um ideal de perfeição que inspira e impõe padrões. Nesse sentido, um dos objetivos da escolha do assunto foi desconstruir a ideia de que a matemática impõe verdades absolutas, nas quais os alunos da escola básica não podem intervir ou produzir novos saberes; e estimular os estudantes a reconhecer como esse conceito se espalhou para além da matemática, funcionando, muitas vezes, como justificativa para estabelecimento de cânones – inclusive para expressões artísticas – que podem se converter em formas de opressão.

Mas como funcionou esse trabalho na prática? Para a matemática, propusemos que os alunos produzissem um álbum de fotografias que retratasse formas simétricas e que, nessas imagens, identificassem os eixos de simetria de reflexão. A intenção de apresentar as fotos foi captar o olhar dos alunos sobre a realidade que os cerca e fazê-los presenciar o conceito de simetria em ação no mundo.

Para língua portuguesa, pedimos que os estudantes escolhessem uma fotografia do álbum e, a partir dela, criassem um conto, um poema ou uma crônica (gêneros textuais trabalhados durante o trimestre), que problematizasse a questão da perfeição. O foco de tal reflexão foi discutir a estranha obsessão da contemporaneidade pela simetria e suas consequências para a produção de subjetividades.

Apesar do potencial da proposta e das atividades apresentadas acima, o trabalho ainda nos parecia incompleto e, paradoxalmente, reforçava o distanciamento e a desarticulação entre as duas disciplinas, uma vez que seu desenvolvimento ocorreria de forma estanque. Assim, alguns questionamentos que perpassavam nossas práticas ainda nos pareciam bastante presentes na concepção da atividade. Por isso, buscamos criar um espaço em sala de aula onde fosse possível aproximar as duas disciplinas, fazendo perceber que os campos de saberes podem ser tomados como absolutamente abertos; com horizontes, mas sem fronteiras, permitindo trânsitos inusitados e insuspeitados.

Frente a tal constatação, consideramos a proposta de docência compartilhada, em que dois professores dão aula juntos – não apenas presentes num mesmo espaço físico, mas discutindo ideias de diferentes perspectivas de forma articulada. Vimos essa colaboração como uma alternativa para criação de um novo ambiente de integração e de produção de saberes, a partir da problematização do papel do professor como detentor único de uma única forma de conhecimento. Deixamos explícito, sem nenhum pudor, que partimos para um lugar totalmente desconhecido em nossa trajetória profissional. O desafio é fazer com que cada professor se torne vulnerável e se desloque de seu espaço disciplinar a um novo lugar, construído coletivamente por todos os atores envolvidos na aula compartilhada, que possibilita a produção de novos saberes.

Em nossa aula compartilhada, debatemos a simetria como um conceito que influenciou toda a cultura ocidental, desde o mundo clássico até a contemporaneidade. Trabalhamos o Renascimento e a valorização dos padrões estéticos de simetria nele presentes, desde Da Vinci, na matemática e nas artes plásticas, até chegarmos à literatura. Identificamos a simetria nos sonetos, a partir de sua estrutura de forma fixa, submetida à combinação de versos, rimas ou estrofes de forma ‘espelhada’. Buscamos compreender como esses padrões de simetria/perfeição foram colocados em xeque no século 20, engendrando resistências ao ideal de perfeição do mundo clássico, que compreendia a beleza como fruto de formas equilibradas e simétricas, à semelhança da natureza. Ao longo da aula, o ideal de simetria, desdobrado na ideia de perfeição, foi sendo questionado até chegarmos aos padrões estéticos de hoje, que os reconhecem como formas de opressão.

A participação ativa dos alunos na construção do conceito de simetria e seus questionamentos sobre a divisão curricular da escola apontaram que a docência compartilhada pode configurar uma abertura para novas dinâmicas de sala de aula e contribuir para outras alternativas de aprendizagem. Propusemos aqui apenas uma entre infinitas possibilidades para aproximar a escola da produção (e não da transmissão) de saberes, a partir da discussão de ideias e da produção de sentido sobre os conceitos.

É importante destacar que essa proposta não implica uma superficialização do conteúdo. Ao contrário, ela explicita que o conhecimento não se limita a informações sedimentadas, a verdades transmitidas por um suposto detentor do saber – o professor –, mas se constitui por construções coletivas, em que são produzidas diferentes relações, olhares e abordagens sobre as ideias em questão, tornando o conteúdo mais profundo, dinâmico e de todos os atores envolvidos.

Diego Matos
Nathalia Cardoso

Laboratório de Práticas Matemáticas para o Ensino/UFRJ
Colégio Pedro II (CPII)

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