CIÊNCIA HOJE: O movimento Parent in Science venceu o Prêmio Nature para Mulheres Inspiradoras na Ciência. O que isso significa para vocês e para a causa?
Rossana Soletti: Além da questão financeira [há uma premiação de 40 mil dólares], o prêmio traz mais visibilidade para a causa. Estamos trabalhando há cinco anos no movimento e tentamos sensibilizar as pessoas para a questão da maternidade. É importante mostrarmos as lutas que travamos dentro da universidade para que isso inspire outros movimentos a buscarem a mesma coisa fora da área acadêmica. Por isso, a visibilidade e o alcance para a causa são os legados mais importantes do prêmio.
CH: Como nasceu o movimento? Houve algum fato determinante para isso?
RS: Houve um fato bem determinante sim. Eu e Fernanda Staniscuaski – também professora da UFRGS e a idealizadora do movimento – fomos colegas de ensino médio, mas cada uma tomou o seu rumo. Conversávamos, de vez em quando, pelas redes sociais e tivemos filhos em épocas bem parecidas. Eu não tinha noção de que a maternidade impactaria tanto a minha carreira. A Fernanda passou pela mesma coisa e teve um insight muito bom ao criar o Parent in Science. Ela estava no segundo filho, ou seja, havia tirado duas licenças-maternidade, e, ao submeter projetos, começou a receber aquelas respostas padrão: “o projeto tem muitos méritos, porém a análise do currículo da proponente nos últimos cinco anos está aquém do esperado”. É aquela questão: ninguém leva em consideração que a mulher teve dois filhos nos últimos anos. Foi aí que ela teve essa iniciativa de reunir algumas pessoas que passaram por coisas semelhantes. Na época eu tinha feito um post sobre como isso estava me impactando, e ela me convidou. Daí, junto a outras quatro colegas mulheres e um homem, nasceu o Parent in Science. Logo de início, começamos a sugerir que existissem editais voltados às pesquisadoras que acabaram de voltar da licença-maternidade, que concorreriam entre si e não com homens que produziram bastante, enquanto elas cuidavam dos filhos. Mas aí veio a questão: o quanto isso seria representativo na realidade brasileira? Não tínhamos estudos sobre isso. Será que a maternidade estava impactando pessoas como nós ou era algo maior? Foi então que decidimos fazer uma pesquisa para tentar saber como era a realidade da academia no Brasil em números. E então o Parent in Science passou também a fazer pesquisa. Mas, claro, não é só pesquisar, mas também discutir a questão.
CH: Dos sete integrantes iniciais, o grupo cresceu bastante. Pode falar da estrutura atual?
RS: Hoje temos um núcleo central com 17 mulheres e um homem. E em 2020, começamos o programa das embaixadoras, já são mais de 70 por todo o Brasil, dentro de diversas universidades. Elas representam o movimento e levam essas discussões para a comunidade mais local delas. Assim, vários grupos de trabalho sobre gênero e ciência foram criados. Isso é muito importante porque, além de ter esse esforço mais global, quando a questão é colocada dentro de uma realidade local, é mais fácil promover uma transformação do que no país inteiro.
CH: Quais são os pilares de atuação do movimento?
RS: Temos a área de pesquisa, o projeto de extensão, as iniciativas de apoio e financiamento, realizamos simpósios e toda a parte de comunicação, via redes sociais, site e newsletter. Na extensão, temos uma bolsista e fazemos levantamentos e informativos. Por exemplo, quando começou essa questão da campanha Maternidade no Lattes, antes de conseguirmos que o formulário abrisse espaço para o registro dos períodos de licença-maternidade, nós começamos a pressionar alguns institutos de pesquisa e agências de fomento a incluírem essa questão nos editais, considerando a licença na análise do currículo. E universidades que queriam fazer o mesmo nos procuravam para buscar orientação. Por isso, passamos a fazer um compilado dos editais que já haviam contemplado isso para montar um guia referencial e incentivar outras instituições a adotarem a medida. Também estamos trabalhando em um documento para compilar diversas iniciativas em prol da maternidade nas universidades, como creches, abonos de faltas, restaurante universitário e salas de amamentação. Também fazemos uma newsletter mensal. Antes da pandemia, também fizemos oficinas com meninas na ciência. Além disso, tem outro braço importante que foi o Programa Amanhã, em que fizemos uma grande campanha para buscar fundos para apoiar mulheres. A partir de uma pesquisa que fizemos, percebemos o quanto muitas mães estavam sendo prejudicadas com o trabalho remoto durante a pandemia. Muitas perderam suas bolsas. O Programa Amanhã veio como uma iniciativa para ajudar na permanência dessas mulheres na pós-graduação. Além disso, as mídias sociais são o nosso contato com o público, nos ajudando a entender melhor as diferentes nuances da parentalidade da academia pelo Brasil.
CH: Quais vitórias concretas para transformar essa questão no Brasil o movimento já conseguiu?
RS: Levantar a própria discussão em torno da parentalidade na academia já é uma vitória. Em termos concretos, acredito que a campanha Maternidade no Lattes foi uma grande conquista. Agora temos a luta para que isso não seja apenas um campo no Lattes para se registrar a licença-maternidade. Essa foi uma primeira etapa. A segunda é continuar com todo esse movimento em prol de mais editais considerarem isso na hora de avaliar o currículo de mães. Dar visibilidade ao quanto as mães, em alguns casos, precisam de financiamento especial também é muito importante. E os benefícios do Programa Amanhã também foram concretos. Houve uma grande mobilização de uma rede de pessoas que estão envolvidas com a causa. Foram 28 mães apoiadas com uma ajuda de custo para que pudessem finalizar os seus programas de pós-graduação. Mas há um ponto importante sobre essa questão: como movimento, nós não temos como garantir que as mulheres serão beneficiadas sempre, isso não é uma responsabilidade do Parent, e sim mostrar a importância disso. Muitas mães querem estar na ciência. Muitas entram, mas têm muita dificuldade de permanecer por conta de todo esse sistema. E quando apoiamos essas mulheres para permanecerem na ciência, estamos lutando para diminuir a desigualdade do próprio meio acadêmico, que é muito grande, com muito mais homens em posições de liderança do que mulheres. Ajudar a mãe a alcançar um futuro melhor para ela é, consequentemente, contribuir para um futuro melhor para os filhos dela. Essas são as maiores conquistas concretas que tivemos. Mas, em minha visão, ter trazido ao debate a questão da parentalidade e, principalmente, da maternidade na carreira acadêmica é a maior conquista. Não é algo palpável, mas é a partir disso que podemos mudar as coisas.
CH: Baseada nos levantamentos que o Parent in Science fez e sua própria experiência, como vê a questão de gênero na ciência brasileira?
RS: Houve uma evolução nos últimos anos, porém, com a pandemia, teve também um retrocesso. Daqui a alguns anos, vamos entender melhor o saldo disso tudo. Atualmente, temos um número equivalente de mulheres e homens no início da carreira acadêmica, no mestrado, no doutorado, no início da docência do ensino superior, se não dividirmos por áreas. Mas a desigualdade persiste nas posições mais altas, como bolsistas de produtividade em pesquisa, líderes de grupos de pesquisa, presidente e diretores de sociedades científicas. Nunca tivemos uma ministra de Ciência & Tecnologia. Precisamos evoluir muito para chegarmos a uma posição de equidade de gênero.
CH: O Parent in Science fez o levantamento ‘Como a pandemia de covid-19 está afetando a vida de cientistas no Brasil’. Pode falar sobre isso?
RS: Entrevistamos quase 15 mil cientistas no Brasil, no início da pandemia, em maio do ano passado, quando houve essa mudança drástica para o trabalho remoto. Sem o trajeto para a universidade e com as aulas temporariamente paradas inicialmente, as pessoas achavam que conseguiriam desengavetar aqueles artigos que não conseguiam escrever porque estavam sempre correndo com as atividades de ensino, pesquisa, extensão e administração. Isso só foi possível para quem não tem filhos pequenos. Nós, mulheres, especialmente, não conseguimos fazer o básico. A pesquisa mostrou que a desigualdade é muito grande. A maior parte das mulheres não conseguiu trabalhar remotamente da mesma forma que fazia presencialmente. Em todas as categorias, de alunos a professores-pesquisadores, quem conseguiu produzir mais foram homens brancos sem filhos, no final, mulheres com filhos. O efeito de raça também foi muito importante. As mulheres negras foram as mais prejudicadas pelo trabalho remoto, mesmo as que não tinham filhos. As com filhos foram mais prejudicadas ainda. Quando perguntamos aos docentes se estavam conseguindo submeter artigos científicos, vimos que 50% dos homens com filhos de até 6 anos disseram que sim e, entre as mães de crianças da mesma faixa etária, a porcentagem cai à metade. Essa diferença só desapareceu quando os filhos tinham mais de 12 anos. E isso vai se refletir adiante, porque esses homens e mulheres, com ou sem filhos, serão avaliados da mesma forma quando buscarem um edital de pesquisa.
CH: Ainda há muito machismo na comunidade acadêmica? Os cientistas estão mais abertos a participar mais dos cuidados com os filhos?
RS: O machismo na academia ainda é muito grande, mas, talvez, varie dependendo da área da ciência. Nas áreas com predominância masculina, como matemática e engenharias, recebemos relatos absurdos de machismo. Não é à toa que têm surgido muitos grupos de gênero na ciência nessas áreas, para tentar enfrentar isso. Claro que existem muitos homens dispostos a contribuir para mudar esse cenário e a mudar também a divisão de responsabilidades com a criação dos filhos. Acredito que, como sociedade, nós também estamos evoluindo. Há um movimento maior dos homens por uma paternidade ativa. Eu nem gosto muito desse termo porque toda paternidade deveria ser ativa, mas já é possível perceber esse movimento, embora isso ainda não seja a realidade, uma mudança efetiva vai levar anos ou décadas. Incentivamos a discussão de que o cuidado com os filhos deve ser dividido, mas não temos o poder de fazer uma mudança cultural. E até haver essa mudança, as ações para a parentalidade têm de ser voltadas à maternidade.
CH: Para além da maternidade, o movimento olha para as questões de raça e assédio na ciência?
RS: Nós estudamos parentalidade, mas não tem como isolar essa questão. Tem intersecção com gênero, raça e, também, outra muito importante que é a questão dos pais de filhos com deficiência. Os nossos dados refletem essa interseccionalidade. Pessoas negras, em geral, são sub-representadas na academia, as mulheres negras com filhos mais ainda. Vão sendo impostos vários obstáculos para que a pessoa consiga não só entrar como permanecer e progredir na ciência. A própria questão dos filhos com deficiência é algo que planejamos pesquisar mais a fundo, porque, segundo nossos levantamentos, o número de docentes e discentes que afirmam ter filhos com deficiência é muito pequeno, o que já pode refletir a dificuldade que essas pessoas têm de entrar e permanecer na carreira acadêmica. Eu tenho uma filha com deficiência e, apesar de não demandar muitas terapias, temos muitas consultas médicas, é um obstáculo a mais. Por isso tudo, não falamos em maternidade no Parent in Science, falamos em maternidades. O nosso próximo simpósio, em dezembro, será sobre maternidades plurais, justamente para abordar todas as intersecções.
CH: A valorização da meritocracia na ciência pode enfraquecer o discurso da necessidade de melhores condições para as mulheres com filhos progredirem na academia?
RS: A ciência é uma área absolutamente meritocrática. Somos constantemente avaliados por coisas específicas que produzimos e não pelo todo. Por exemplo, nós precisamos fazer ensino, pesquisa, extensão e administração, mas, quando vamos buscar financiamento para um projeto de pesquisa, somos avaliados com base no número de artigos que publicamos nos últimos anos na área daquele edital. Se a mulher teve um filho e parou por dois anos para dar atenção a ele, isso seria uma questão de escolha. Ela voltaria depois da pausa, tão competente quanto sempre foi. Mas a carreira dela pode ter acabado aí porque, quando for pedir uma bolsa, pleitear financiamento para um projeto de pesquisa, fazer um concurso, será avaliada pela sua produtividade nos últimos cinco anos. Nesse ponto muitas mulheres extremamente competentes, que fizeram um doutorado excelente, um pós-doutorado, não conseguem mais voltar. Eu conheço diversos exemplos, e eu quase fui um deles. É sempre uma análise meritocrática, com base na quantidade do que a pessoa produziu. Podemos ter professores excelentes que investem um tempo enorme tentando se aperfeiçoar nas suas metodologias e ferramentas de ensino, mas isso não é levado em consideração. Estudos mostram que, na academia, as mulheres tendem a fazer mais do que os homens coisas que não são avaliadas pela meritocracia, como projetos de extensão e atividades em escolas, que não contam para subir na carreira. Na pandemia, ficou evidente o quanto a divulgação científica é importante, mas isso não é levado em consideração quando você vai pedir o seu projeto de pesquisa. Vão olhar os seus artigos, e não se você se comunicou com o público. Nós, do Parent, achamos que a avaliação precisa mudar. A avaliação muito meritocrática reduz a diversidade na ciência, que é importante para o próprio fazer científico. Com uma ciência, um meio acadêmico mais diverso, chegamos a soluções melhores, de uma forma mais rápida.
CH: Que obstáculos enfrentou que quase a afastaram da ciência?
RS: Eu fui educada, academicamente falando, a pensar que ter filhos durante o mestrado e o doutorado iria atrapalhar minha carreira. Depois do pós-doutorado, passei para o concurso na Universidade Estadual da Zona Oeste do Rio de Janeiro e pensei: “Pronto, agora eu posso ter filho”. Os levantamentos do Parent in Science mostram que as pesquisadoras têm filhos, em média, aos 32 anos de idade, depois de serem contratadas como docentes numa universidade. Eu entrei e engravidei em seguida. Tive minhas duas filhas em sequência. Na época, era professora da pós-graduação, e os programas são avaliados pela produção dos seus docentes. Muitas mulheres são convidadas a sair da pós-graduação porque tiveram filhos. Eu não cheguei a ser convidada a me retirar, mas, provavelmente, seria. Antes disso, decidimos voltar para o Sul. Tive que fazer um novo concurso e, além do desgaste de estudar com duas crianças pequenas em casa, fui penalizada pela minha baixa publicação nos anos anteriores, durante a licença-maternidade. Ficou um buraco no meu currículo Lattes. Só passei porque tinha experiência didática e fiz uma prova muito boa, mas quase entrei nesse rol de mulheres que largam a ciência porque não conseguiram uma posição depois de terem filhos.
CH: O que esperar dos próximos cinco anos do Parent in Science?
RS: Bastante coisa! Queremos conseguir formas de financiamento para programas como o Amanhã. Grande parte das mães do programa são as únicas responsáveis pelo sustento dos filhos, então não dá pra trabalhar só por amor pela ciência, tem que fazer algo que pague seus boletos. Ficamos sensibilizados em ver quantas mães querem fazer ciência, querem produzir conhecimento para o nosso país e são impedidas por questões financeiras. Diante de tudo que queremos fazer, o movimento precisa se tornar uma instituição.
Por Valquíria Daher
Jornalista, Instituto Ciência Hoje
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