Das brincadeiras de acampamento às expedições pelo mundo

Instituto Tamanduá
Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal
Universidade Estadual de Santa Cruz (BA)

Fundadora do Instituto Tamanduá, a médica veterinária Flávia Miranda é pioneira no trabalho com animais selvagens e já descobriu novas espécies

CRÉDITO: FOTO CEDIDA PELA AUTORA

Passei minha infância assistindo aos programas do oceanógrafo francês Jacque Cousteau (1910-1997), mas não havia referências femininas na série. Talvez, por isso, eu não imaginava que poderia ser uma exploradora. Lembro-me também da minha grande felicidade, aos 6 anos de idade, ao ganhar uma mochila de carga enorme. Um amigo me disse, na época, que era brinquedo de menino, mas eu não ligava e seguia.

Eu gostava mesmo era de brincar de “acampar” para ver os bichos. Como morava em Campo Grande, portal do Pantanal, eu costumava brincar com lagartos e corujas, fazia fogueira e tinha um laboratório dentro do meu quarto, onde testava vários experimentos. 

A vocação sempre esteve presente, mas a certeza de que queria ser uma naturalista veio aos 13 anos, quando assisti ao filme Nas Montanhas dos Gorilas, que conta a história da pesquisadora norte-americana Dian Fossey (1932-1985), seu estudo com os gorilas e toda sua luta pela preservação desses animais em Ruanda, na África. Eureka! Lembro que saí do cinema totalmente emocionada e com a certeza de que queria ser como ela ou melhor ser ela!

A vocação sempre esteve presente, mas a certeza de que queria ser uma naturalista veio aos 13 anos, quando assisti ao filme Nas Montanhas dos Gorilas, que conta a história da pesquisadora norte-americana Dian Fossey

Com 15 anos fui fazer colégio agrícola no meio do Pantanal, nada convencional para uma mulher. Éramos três estudantes do sexo feminino para 120 alunos homens. Lá pude ter contato com a realidade nua e crua sobre a dicotomia entre o agronegócio e a conservação, e constatar que a área é majoritariamente masculina. Apesar disso tudo, foi maravilhoso. Lá eu tive meu primeiro contato com os tamanduás. Foi amor à primeira vista. 

Em seguida, ingressei na graduação de veterinária. Na época, no curso, não se falava em animais selvagens. Mas, logo, conheci uma professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) que trabalhava com genética e me falou que existiam veterinários que cuidavam de animais de zoológicos. Fiquei muito interessada! 

A Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens (Abravas) promovia congressos todos os anos, e sempre participei de todos. Assim, me tornei pioneira na área de medicina de animais selvagens no Brasil. Nesta época, fui para a Colômbia fazer curso na área de conservação, e sabia que estava no caminho certo. 

Depois de formada, trabalhei em uma ONG internacional que me deu a oportunidade de atuar em diferentes países na América Latina, da África e, até mesmo, de participar de uma expedição à Antártica. Estar naquele continente, abriu-me os olhos para o amor pelo desconhecido, por andar em áreas inóspitas e relatar o que ninguém ainda havia visto. Mas sabia que seguir essa carreira seria uma trajetória difícil por ser uma área pouco habitada por mulheres. 

Toda essa vivência no terceiro setor me trouxe maturidade para criar meu próprio instituto, e foi assim que surgiu o Instituto Tamanduá, que completou 19 anos. Tenho orgulho em dizer que, hoje, nosso quadro é composto por 90% de mulheres. Elas estão em campo e/ou na gestão. 

De volta à minha trajetória, fiz o mestrado em ecologia na Universidade de São Paulo, e, logo após o término, sofri um grave acidente, capturando um tamanduá no Pantanal. Além dos mais de 500 pontos no corpo e um ano e meio de recuperação, tive muitos insights do que queria fazer a partir daquele renascimento.

Sofri um grave acidente, capturando um tamanduá no Pantanal. Além dos mais de 500 pontos no corpo e um ano e meio de recuperação, tive muitos insights do que queria fazer a partir daquele renascimento

Assim, eu consegui elaborar meu projeto de doutorado em zoologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde trabalhei com os dados dos mais de 10 anos em que rodei a Amazônia em busca dos menores tamanduás. O interessante é que, após 261 anos da primeira e única descrição desta espécie, feita pelo pai da taxonomia, Carlos Linneu (1707-1778), eu acabei descobrindo outras seis novas espécies. Foi algo muito recompensador uma vez que muitos não acreditavam que, como mulher, iria conseguir passar todos aqueles anos na Amazônia. 

O interessante é que, após 261 anos da primeira e única descrição desta espécie, feita pelo pai da taxonomia, Carlos Linneu (1707-1778), eu acabei descobrindo outras seis novas espécies de tamanduá

Por mais de seis meses, morei com os Yanomamis na região da “Cabeça do Cachorro”, interior do Rio Negro, onde pude viver uma cultura única dos povos originários. Sou neta de Carajás, e minha ancestralidade aflorou naquele período. Pude entender o quão complexo é pensar em conservar fauna e flora e, também, refleti sobre minha atuação ao longo desses anos. 

Apesar dos percalços, temos que seguir em busca dos nossos objetivos e continuo a mesma exploradora. Ano passado, descobrimos uma nova espécie de preguiça na Mata Atlântica e um subfossil de tamanduá em uma caverna úmida em Mato Grosso do Sul. E claro, ainda amo acampar, e faço dessa brincadeira minha profissão. 

Hoje, eu me divido entre a universidade que eu amo (a Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC), o Instituto Tamanduá, que é minha vida, e claro as expedições que alimentam minha alma. E toda minha sede de conhecimento pelo novo e por explorar é suprida pelas pesquisas dos meus alunos, que trazem essa energia reavivada com novas perguntas e respostas. Assim, tudo faz sentido, pois não deixamos de aprender nunca.

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